Crônicas

Retratos da infância perdida

        A infância tem muitos retratos. São zonas de conforto a que recorremos, lá do futuro, para encontrar uma paz perdida, uma consciência que, ainda em formação, enxerga o mundo pequeno da casa onde moramos, da rua que conhecemos, dos amigos de vizinhança. Depois o mundo vai crescendo, a escola vem vindo, outros amigos chegando, temos nossos primeiros embates com a realidade, as provas, os concursos, as disputas pelo mercado de trabalho e o mundo vai se expandindo, e não somos mais o preferido das tias, dos primos, dos amigos e passamos a ser mais um no mundo tão grande que não imaginávamos antes.
         A primeira descoberta de mundo é abrir as mãos em concha e contemplar a joaninha que achamos “perdida” no jardim. A mão em concha é um dos melhores retratos da infância. As nossas mãos são o primeiro contato com o mundo que vamos encarar. São nossas mãos as molduras que colocamos nos olhos contra o sol brilhante para poder ver mais longe. São as nossas pequeninas mãos que tentam acariciar o rosto imenso de nossos pais, e são nossas mãos que vão acariciar o primeiro rosto que amamos. São nossas mãos as primeiras defesas de nossos corpos e são nossas mãos as primeiras armas que temos.
        As zonas de conforto de nossa infância são as lembranças de nossas mãos a empurrar carros imaginários, com suas curvas incríveis, em que a única preocupação é tentar por diversas vezes estacioná-los em lugares inimagináveis, sabendo que caso ele se desequilibre nossas mãos vão sustentá-los.
         São nossas mãos em concha que recolhem as conchas da areia da praia, são nossas mãos em concha que sustentam a barragem da água suja da rua, antes que nossa mãe venha interromper nossos projetos de engenharia. Os retratos da infância são sempre o toque de nossas mãos para sentir a rugosidade do muro, a textura do tronco e o veludo das folhas das árvores acabando de cair, ou a pegar aquela que jaz inerte no chão.
          Os retratos da infância são os que nossas mãos sentiram e o cérebro guardou o arrepio na pele do sentimento sentido. Até mesmo os retratos que tiramos são nossas mãos que apertaram o botão, ou receberam o primeiro diploma de formatura e em seguida nossas mãos apertaram outras mãos para agradecer.
           As melhores fotografias são aqueles momentos que não perdemos, as melhores lembranças são aquelas que nossas mãos passam suavemente na fronte, na tentativa de recordar os melhores momentos. São nossas mãos que acolheram em concha nossas lágrimas, e são elas mesmas a toalha que as enxugaram.
           Os melhores retratos da infância não estão perdidos, embora não retornem, mas nossas mãos são as únicas capazes de escrevê-los para que a folha de papel se dobre e no fundo da gaveta sejam guardados para sempre.

Fonte da foto: morguefile.com

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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