Crônicas

A viagem

        E assim, quando eu adoecia, sua mão fria pousava na minha fronte aquecida e era como um bálsamo que me trazia o remédio que nenhum outro remédio podia acalentar.
        De outra vez, era você que estava na cama e eu, meio sem jeito, trazia fumegando uma sopa qualquer. Doente, você ria diante dela, e minha mão sentia o flamejar da sua testa, e a sua febre de súbito desaparecia.
          E fomos assim, com o passar do tempo, alimentando nossas alegrias e sustentando nossas quedas, com o correr dos dias.
       Uma noite dessas, eu acordei e minha mão ao pousar no seu lado encontrou o vazio. Foi a primeira noite que dormi sem você depois de viajarmos juntos por tanto tempo. Era como voltar ao passado quanto não tinha ninguém e acordava sozinho.
         Qualquer barulho que acontecia na casa, o bater do vento na porta teimosa, a cortina na janela dançando sua dança muda, o latido do cachorro no quintal como avisando a chegada de alguém, ou mesmo o pinga-pinga da bica que só agora eu percebia e me arrependia de nunca tê-la consertado, porque o barulho não me incomodava, porque você ocupava todo o resto, e só agora eu notava a solidão tomando conta do espaço que era ocupado por você. Levantava a cada um desses sons e andava pela casa tentando te encontrar. O seu espírito ainda zeloso, teimoso a tomar conta dos pratos sujos na pia, da roupa amarrotada e jogada sem qualquer jeito nas cadeiras.
        E então eu resolvia sair pela noite, pelo dia, à procura dos lugares onde frequentamos juntos, não mais caminhando rápido ao seu encontro, mas prorrogando a chegada, como se meus passos recuados pudessem dar ao tempo, tempo para você chegar.
        Quando amigos resolveram me levar para novamente viver a vida, no meio de dançarinas seminuas, como se meu conforto estivesse no viço de uma juventude qualquer, ou de um corpo oferecido em promoção, eu procurava no meio delas descobrir você fantasiada de qualquer coisa que pudesse me enganar, e sairíamos dali correndo.
        Tudo em vão.
       Repasso as mãos nos seus retratos, vislumbro o sorriso branco, iluminado, como uma praia guardada no tempo. E depois, trazendo seus traços mais presentes, ainda o sorriso era a mesma praia, agora cercada pelas ondas que desenha o seu rosto com o passar do tempo.
      E uma das noites eu acordei de repente, com um susto qualquer, e te procurei pela casa como um fantasma rápido e fagueiro, com as pernas obedientes como antigamente. E vi você, finalmente, chegar com a roupa e o rosto de antes, me pegar pelo braço e me olhar sorridente, com o convite para fazer uma nova viagem para sempre.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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