Crônicas

Quarentena e abstinência – a higienista

       Minha abstinente ficou inconsolável ao ver, depois de setenta e duas horas, o seu sorvete, tão duramente negociado, de uma forma criativa, tenho que atestar, se converter em um líquido disforme, onde a colher poderia afundar tranquilamente, afogadamente, sem, no entanto, em seu retorno trazer uma substância aromática e sedosa. Era um melaço de açúcar e mais nada.
        O seu olhar se tornou mais brando, devo dizer, até, um pouco adocicado. Mas, perguntei aos meus botões: E a ameaça de que isso não ficaria assim?
        Ela se levantou, resoluta, e foi para a janela protestar batendo as suas panelas, tão fortemente, que o fundo da frigideira saiu do plano para o convexo. A partir daí, todos os ovos estrelados, em vez de pairar no meio, como uma terra plana e o sol no meio, o líquido oval (permitam-me o trocadilho) correu para os cantos, tornando aquele universo terraplanista em uma galáxia muito, muito distante do comestível. Passou a ser um ovo estrelado com um buraco no meio.
       O seu nível de protesto era tanto que qualquer batida, mesmo a de um martelo no vizinho, um pancadão passando na rua, os passos alterados de alguém pela escada, já era motivo para seguir até a janela e bater junto.
       Vendo desolada a embalagem plástica do sorvete já vazia, e desfeita do seu interior desejado, ela decidiu, então, que esterilizaria toda a casa. Assustado, verificando que a primeira faxina passaria por mim, já me considerava, devidamente, esterilizado com o álcool gel.
        Até aí, tudo bem, aceitei, resignado, mas passar álcool gel no pão e na boca antes de comer já estava indo longe demais.
        Restou-me fazer o que devemos fazer nesta quarentena, quando o tempo já não diz para nós onde começará o futuro ou se ele voltará.
        Acolhi minha abstinente nos braços e ficamos assim no sofá pensando quando poderíamos, enfim, sair. Não seríamos mais as mesmas pessoas, até porque já não éramos. O carinho entre nós aumentou, e ela voltou aos seus um metro e cinquenta de altura, mas sempre grande para mim.
       Nos abraçamos e juntos teremos que nos abraçar. Ninguém voltará o mesmo, e mesmo aqueles que relutam em mudar não voltaram os mesmos. A quarentena nos separou, e penso que muitos continuarão separados. Não se nega a existência, não se nega que existimos ainda que despedaçados. A grande mudança que virá será a pergunta: como seremos, mudados? Mais alquimistas, mais revoltados ou mais higienistas?

Fonte da foto: Photo by Clay Banks on Unsplash

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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