Opiniões

A arte de jogar fora a própria história

A ARTE DE JOGAR FORA A PRÓPRIA HISTÓRIA

     O jornal Financial Times, londrino, escolheu a ex-candidata Marina Silva como uma das mais influentes em 2014. O episódio me faz lembrar sobre Gorbachev, visto pelo mundo como uma pessoa incomum e, internamente, pelo povo russo, como um traidor do socialismo. Existem histórias que não batem. O que ficou de mais marcante na ex-candidata foi uma claudicante forma de professar seus discursos e mantê-los coerente.
     Com o passar dos anos as pessoas, principalmente as famosas, tendem a ficar melhores, com o apuro técnico de sua arte, o improviso natural, aquela tranquilidade em lidar com a tela da TV, uma desenvoltura que chega a beirar o encantamento desiludido com o real. Verdade? Nem sempre. Alguns chafurdam numa história passada, de glórias, de sucesso para andar no mesmismo, como se protelasse uma aposentadoria.
     Aproveitando a escolha do FT, vamos falar dos velhos discursos, que enojaram ou enojam a musa eterna Rita Lee, muito nova para eles. De políticos a artistas, celebridades, os velhos discursos não se mantém porque a vida é muito rápida. As memórias se apagam com a rapidez da internet, novas notícias, novas celebridades afloram, que sejam por fugazes quinze minutos ou quinze dias.
     Manter o discurso e atravessar o tempo sempre atraindo novos personagens são casos cada vez mais raros entre as estrelas. O papa Pio XI chamou Marconi, o inventor do rádio, para que instalasse aquele transmissor moderno da notícia no Vaticano. Pela primeira vez, católicos do mundo inteiro podiam ouvir a voz do seu patrono. Católicos que nunca viram o papa, jamais o ouviram, ou acreditavam na sua existência apenas por ouvir dizer e acreditar.
     Que maravilha, para eles, ouvirem, pela primeira vez, a voz de alguém tão distante, desde os confins do planeta! Essa aproximação leva a outro conceito de intimidade: a responsabilidade por aquilo que se fala. Até porque o que se falava poderia ser desmentido, afinal, não fora ouvido da própria boca.
     Nossas celebridades pecam mais pelo que falam e menos pelo que fazem. Afinal, fazer alguma coisa é um ato de propriedade, mas dizer que farão, ou que nunca farão, é que leva à derrocada da História; da sua História.
     Recentemente, Marina Silva rasgou sua história, não pelo que fez, mas pelo que falou que não faria. Roberto Carlos desdisse suas crenças vegetarianas em troca de uma polpuda grana em comerciais, para falar de pessoas mais iluminadas pelos holofotes. Abraçar um discurso é algo perigoso, quando não se acredita na ideologia que nos impele e menos na própria ambição e mais na inveja, despeito. Mantê-lo, sob todos os aspectos, é ato de coragem diante do imprevisível futuro. Claro que alguns podem dizer que esqueçam o que fora escrito. É um ato em si perdoável, afinal todos têm o direito de mudar de opinião. O problema é o tsunami que deixamos para trás.
     A coerência no discurso é algo muito difícil de manter diante das tentações. E, diferentemente do lixo, um discurso não se recicla, as palavras ditas erradas permanecem.

Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura