Poemas

Um tributo a minha terra querida

     Sabe aquela saudade que bate na gente? Pois é. Quando saí do Rio, pela última vez, foi dando aquela imensa vontade de chorar, e eu olhava a janela do ônibus e via as ruas, que eu passaria a usar como visitante.
     A saudade foi se guardando, e com o tempo resolvi recomeçar as minhas leituras, e decidi me dedicar a escrever. Comecei com os clássicos, que sempre demandavam tempo para leitura: Os Lusíadas, A Ilíada, As Cidades Invisíveis, A visão do Éden, e, por último, um livro maravilhoso – O Paraíso Perdido, de John Milton. A junção da saudade e destas leituras me inspirou a fazer o poema abaixo.

MITO SAMBA ENREDO QUASE ROMÂNTICO DA CIDADE MARAVILHOSA

Canto, danço, ó Musas, Cabrochas, Passistas,
deusas seminuas do carnaval da ilha Afortunada,
que desgarrada

do paraíso

                                                                                                     perdido,

chegou pura, ao lugar sem pecado.

Onde o mar acaba

e começa a terra imaculada

                                                                            – a visão do Éden europeizada.

Mas,
no meio do caminho havia um mar.
Havia um mar no meio do caminho.
Que era preciso atravessar.
Que atravessar foi preciso.

Da janela deste barco
viu-se um rio.
Será um rio?
O que faria um rio bem no meio do mar de janeiro?

E por que te entregar em nome de um rei que não se sabe onde está?
Se pertencias, isso sim, a Temiminós e Tupinambás.

Caravelas de velas tesas, em fila, encarreiradas,
a seduzir a baía virginal, fechada.
A serpente insinuante e obstinada,
a perseguir Evas inocentemente

despudoradas.

Concebendo a língua estranha
a serpente rastejante na água calma,
desencaminhando as almas e os corpos saborosos,
que resistiam na solidão abençoada.

Deixa na língua sussurrada
o sensível sibilo sedutor.
Todos os sons sempre assanhados.
No símbolo sutil e adocicado
do beijo, o som, o estalido,
o chiado eterno e sofisticado
no sotaque incomparável.

Suba por esses morros de florestas!
Venha, Estácio, contempla deste alto
as mazelas que serão cumpridas!

Que espécie de máquina, neste mundo, ousastes disparar?

Como tivestes coragem de fundar,
de inventar, de esculpir,
nesses montes formosos,
nas praias brancas, na tez morena,
uma cultura nova
que bens não trouxeram

lembraram tanto de ti
que nem uma estátua fizeram!

E desta invasão anunciada
costumes estranhos aportaram,
transformando os corpos nus em vestidos
quase desnudos e erotizados,
cobrindo o que não queria ser

descoberto.

Mistura de
lamentos de negros amedrontados,
choros de brancos saudosos.
Amancebando
entre a inocência
de índios e índias que cruzavam
nas ocas, nas caras e bocas,
inventando motivos de festas e encantos.
Finalmente desvirginando
o que havia de puro, em impurezas transformando
o que era bendito e quase santo.

Receptora da corte europeia
Representante da terra que a imperatriz não quis.
Ah! Que falta fez um aventureiro que te lançasse mão!

Cantai, dançai este Rio perdido abusadamente
nas memórias

resistente.

Memórias que foram permitidas pela lei que não cola
mas se

recolhem

no som de
batuques,
cadeiras nas calçadas,
nomes e datas eternas nas fachadas
a existência de um lar.
Convivendo madames
inocentes e satânicas
imoladas em navalhas,
que cortavam romanticamente o ar.

Bondes e lotações alegres no tempo
em busca de um futuro lânguido e feliz.

Inexistente

Teus cariocas se misturaram por outras terras,
mas não esqueceram que só em volta da Guanabara
é que eles existem.
Afinal ser feliz e ter o teu sobrenome, quem não quer?

Quem não viu pendurada
na corda a independência prematura,
relembra nas ruas
os nomes daqueles que te tentaram livrar
de cadeias,
te escreveram e reescreveram.

E você, musa, posando sorridente
para os artistas que te veem

O tempo te trouxe buracos escavados nas montanhas.
Monstros agarrados na pele te sobem as encostas,
barracos, carrapatos
a desfigurar os cabelos do púbis florestal antes inexpugnável,
e entregues
a pouca sorte da pobreza que te come.

Não existem mais encantos a desbravar,
descobrir, encontrar, as navalhas que te cortavam,
quase ingênuas, são hoje AR15
de balas tra—çan—–tes
te
cortando
e

afugentando

                                                                              para bem longe

os que te amam.

Quanta saudade nos deixa quando partimos!
Os encantos mil km de distância ficam.

Onde bate o coração do Brasil?
O berço não balança ao som do canto,
mas das enchentes lacrimosas que te enchem o seio.

Mas não conseguem afundar
o samba e as canções que vivem na alma da gente,
e traz o olhar perdido, inocente,
da cidade com alma de gente.

É tom, é o tal é o azul
das ondas do mar, sensuais, que vão e vem,

generosas,

que a bunda daquela garota,
que passa cheia de graça,
beija e balança.

Mas também tem os desejos que te habitam.
Nos cheiros de concupiscências das pequenas janelas iluminadas,
à beira do nosso Sena pequeno e mangoso.

Em cada qual uma donzela desencantada,
à espera do príncipe endinheirado ou
dos marinheiros de fôlego suspenso
e olhares

espantados,

que no teu porto em busca sensual abraça.

Que no teu seio, os filhos teus,
pátria amada,
te esperam, gentis.

Andar, voltar, sempre procurando encontrar
a mesma esquina e a mesma história.
A redundância é parte de ti,
como o abraço que não se solta.
Tuas formas são a linguagem
que de ti vão falar o mundo,
transfigurada,

romanceada,

                                                                           lembrada

mais do que um sonho, uma tragédia anunciada.

Uniram-se a nadas    +      juntaram-se misérias = Compartilharam danças,

antes              abertas                      ao mundo simples da cidade que é maravilha.

Mas, de repente, tudo se ilumina, e uma vez mais a fantasia te encobre

Can         do,        çan        re         bran

             tan        dan         do,      que          do

de

cima

de alegorias carreadas

enredadas nas cantorias de baianas

importadas, modernas, estilizadas,

eterna porta-bandeira

à espera de seu

mestre-sala

sambando

no

Relembra nos sonhos sonhados,
paticumbum no meu coração.
Pega no ganzê, neste mundo encantado,
canta a história do Brasiuiuiuiu!

E também se veste de luto.
Lembra teus mortos nas guerras
da ideologia,
gritos abafados de porões,
em músicas,
reuniões,
protestos,
festivais,
rebeliões.
Afinal, mais do que aqui:

É proibido proibir!

Ou da humana miséria
e dos seus encantos, passeata de cem, mil.
Calabouço. Cala a boca, moço!
Mas, se fosse seu filho?
Ele seria um cara-pintada.

A apreensão na cidade,
a que se chega de medo morrendo,
mas que o eterno retorno diz:
que no além dela não se pode ser feliz.

Se não tivesses um nome, que nome eu te daria?

Encastelada nos morros que apontam para o céu
como seios de boneca.
Dos olhares estranhos dos que te visitam,
olhando-te como basbaques, encantados.
Que nome eu te daria?
Escondida!
nas ruelas,
nas praias, no zumbido do vento

       sobe

que           e           nos morros açucarados e morada do filho de Deus

                     desce

Durante o dia, uma cidade totalmente nova.
Debaixo da beleza, as ruas que se contorcem
alegres, surpreendidas, acauteladas.

Durante a noite, tua vida é medo.
Caminhantes temerosos na cidade inimiga.
Nos sinais,
no carro parado,
na casa engradada,
na pequena mão armada,
encontro de sobrinho e tio

da família que nunca existiu.

Democrática!

no mulato mais emorrado,
ideológico no partido alto,
ao classe média mais apartamentado
cheio de bossas novas.

Daquela garota tão ipanemaizada, madureirizada.
São tantas e tantos.
São eles e elas o teu nome, de janeiro a janeiro.

De dia falta água,
de noite falta luz,
polícia,
decência,
janelas abertas,
bate-papo nas esquinas,
peladas de fim-de-tarde.
Ébria!
do malandro mais botequinizado.

Enfim, uma média, seu garçom, faça o favor.
Mas, pensando bem, é melhor um guaraná.
Que o calor está de matar!

Erótica!

Atroz amante que trai e ama,
que protege e desrespeita.
Cidade desconcertante,
contraditória.
Dissidente, indomável,
rebelde, incontrolável,
bela e dominante.
Maravilhosamente.

Que seduz

e afasta o amor que se sente.

Ama-se por dogmática.
Dócil e dolorosa.
Doida por ela, doída por ela.
Claustrofóbica e

fascinante.

Pérola e lamacenta,
desordenada e agitada,
como a doença e a febre,
vivendo

harmoniosamente.

Despudorada!
licenciosa e

cativante.

Pobre de riqueza,
rica de humanidade.
Que nome te daria, musa desconcertante?
Herdeira das ruínas legadas
sobre as manchetes dos jornais
Triunfante!

Nas linhas românticas das ruas curvas,
nos riscos e desenhos obscenos dos muros,
outrora políticos,
até que terremotos provocou Celacanto.

E a gentileza gerou Gentileza

No ambiente seleto dos escritores,
poetas,
seresteiros,
namorados,
artistas de grafites e equilibrismos incomuns.
Palhaços elegantemente desarrumados fora dos circos,
ou pedintes nos sinais: dá para sair algum?

O viajante se reconhece descobrindo
o que parece que viu e não terá,
no retorno sobrevivente
ao lugar de onde veio.

O habitante se reconhece
pelo muito que teria
se não tivesse se perdido
ou guardado.

Por isso te louvamos em retratos antigos e amarelados,
lembrando o que foi e jamais será retornado.
E o amor se perpetua dentro do flash azulado
da Rolei Flex de memorial longínquo e revelado.

Os olhares de soslaio,
os meneios dos saiotes indecentemente preparados.
Puxões, de mulheres, enciumados.
Que se olham e olham de rabo de olho
os ônibus e pernas amorenadas,
da cor da cidade em seus habitantes.

Jogo sensual,
erótico de olhar e
mais que anseiam se encontrar
no outro.

Não se confunda com o que dela se fala.
Acredita no paraíso escondido e perdido na memória.
É preciso acreditar no que falamos dela,
e não do que dela se fala.

A crença de o paraíso estar presente,
do contrário estará perdida

a  H  i  s  t  ó  r  i  a.

A História da cidade está nos sons da noite,
nas buzinas dos automóveis,
nas piadas,
nos gritos de camelôs,
nos choros,
nos tiros,
na Bombaim americana.

Na balbúrdia das boates
e nos silêncios das igrejas,
das procissões e
dos blocos de cordões.

Fatos que convencem.

Mas os que mentem não são as manchetes,
mas as atitudes que se formam
nos homens que falseiam.

Nas piadas de mau gosto que encobrem a realidade.
Dos olhares que olham para o alto,
a pobreza que sobe encostas,
a cidade partida em sul e norte.

Espantando o medo, escondendo o medo
nas belezas que jazem abaixo,

inertes

Afugentando e culpando a própria derrota.
Entocadas nos morros e jaulas.
Em cortiços e falsas riquezas na terra firme.
Do mar azul que a decora.

Esta cidade carioca.

Mas, a cidade é um emblema para quem não está.
É uma prisão para quem não pode sair.
É o assombro de quem a vê a primeira vez.
É o desespero de quem já saiu.
É a angústia de quem tem medo de voltar.

Ir e vir dela é sempre a surpresa.
Do mutável que permanece sempre escondido: Cosme Velho!
Do casario de boa memória: Santa Tereza!
E o desânimo do belo que destrói: Aterro do Flamengo!

De repente a tarde acorda:
É goooool!
De vermelho e preto, com uma cruz de malta,
cheio de pó de arroz, de manequinho insolente,
diabinho solto, são cricri que nos salve,
mas amadureceu e abalou Bangu.
No fundo, adOlaria uma portuguesa.
Bom sucesso de todos.
Bota mais uma para comemorar.
Esse calor… esse calor…

Desenhada pelo Criador.
Desfigurada pelo morador.
Pintada do céu com o pincel empíreo.
Arrumada em um canto de mar,
escolhido.
Deslocada em circunferência, abraçando esperanças
de outras terras,
com a perplexidade de braços abertos
a reger a orquestra desta Cidade Maravilhosa.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura