Crônicas

E se Capitu falasse?

Traiu ou não traiu? Uma pergunta ou um fetiche?

        Nossos feeds de notícias, frequentemente, publicam um feminicídio no país. Homens assassinam suas ex-mulheres, basicamente, para livrar-se de alguém que “atrapalha” as suas felicidades ou então para “atrapalhar” a vida de alguém que quer seguir a sua. Nesse sentido, podemos dizer que felicidade é uma palavra com vários motivos. Todos têm o direito de seguir suas vidas, desde que não atrapalhem a vida do outro.
         Por que Capitu, a personagem de Dom Casmurro, de Machado de Assis, entra nessa história?
        Bem. Desde os tempos do colégio, ao estudar literatura, até entrar na universidade, a pergunta sempre corriqueira e mundana era, ou é: Capitu traiu ou não traiu Bentinho, o personagem que se tornou Dom Casmurro, sozinho, pensando e debatendo dentro de si se Ezequiel era o seu filho e não de Escobar, seu dileto amigo?
       Hoje, penso que sempre houve uma interpretação, a partir do olhar do parceiro ciumento, do casal que somente engravidou quando os casais amigos, no caso Escobar e sua mulher, passaram a conviver com assiduidade.
       Afinal, Capitu traiu ou não traiu? Existe pergunta mais machista do que essa? A pergunta não seria uma forma de sapatear sobre o corpo ou a imagem de uma mulher, estrategicamente afastada pelo autor, em algum lugar distante, sem direito de defesa?
        Uma mulher sendo colocada no palco da suspeição, abandonada no exterior para viver sozinha até sua morte. Caberia perguntar ao nosso nobre Machado, por que não perguntou à própria se cometeu o adultério ou não? Machado praticou um feminicídio, sem direito de defesa?
        Claro, o autor coloca a questão de Bentinho não ter conseguido engravidá-la até que os casais amigos se visitassem. E a pulga se postou atrás das orelhas de quem se diverte em fazer essa pergunta ao distinto público, como uma arte de zombar da suposta arte da mulher saber esconder seus crimes.
       Capitu foi morta sem o mesmo direito de defesa com que se cometem feminicídios pelo país. No fundo, não seria uma arte de expor machismos, baseados na desconfiança ou na falta de confiança dos homens em si mesmos? Bentinho via no rosto de seu filho os traços da traição. Via? Ou imaginava o que via, como uma forma de vingar-se da sua falta de maturidade.
      Muitos homens descontam nas mulheres suas fraquezas. Os que são fortes sofrem porque não tomam nenhuma atitude extremada, apenas aceitam o que o destino lhes impôs e tentam retomar suas vidas; e que chorar um pouco não faz mal a ninguém. Os fracos? Bem, praticam suas fraquezas.
       Por que uma mulher não pode ficar com um homem e amá-lo, apesar de suas fraquezas, e por que um homem não liberta uma mulher, se deseja se mostrar forte para outras, já que para uma mulher única não acha suficiente?
       Capitu, uma mulher independente e determinada, que usou todas as artimanhas que sabia para livrar Bentinho de se tornar padre, conforme o desejo da mãe dele, por que usaria alguma coisa assim, uma forma de trair a quem sempre quis bem, justamente com seu amigo que usou um argumento para, também, ajudar a livrar Bentinho do sacrifício?
        A pergunta deveria mudar: Não seria se Capitu traiu ou não? Mas, afinal que homem era esse Bentinho, que foi ajudado por muitos e começou a ver fantasmas?
        Quem ama não mata? Bentinho, realmente, amava Capitu?
        Com a palavra, Capitu.

Origem da foto: Foto de Timothy Eberly en Unsplash 

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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