Opiniões

A guerra antes da guerra: seria o nosso momento?

          As guerras não começam como as guerras são. As guerras não aparecem do nada, como se, de repente, blocos antagônicos resolvessem dar fim às suas disputas partindo para a luta corporal. Não. As guerras começam antes, como pensamentos que se aglutinam, quando duas forças começam a sair do plano da discussão, do debate, e partem, com confiança, para a verborragia das palavras ofensivas, revelando, pelo desconhecimento do outro, muitas vezes por emburrecimento próprio, ou apenas por não querer compreender como funciona a lógica contrária, entregando-se a debates inúteis.
       Para preencher esses buracos, por essa ignorância, o preconceito, a definição do outro passa pelo preenchimento através de rótulos, palavras que não definem o oponente, apenas são palavras que fazem parte do vocabulário de temor por alguém.
              E aí vão, comunistas, socialistas, mesmo que não se compreenda o que são esses seres, direitistas,  fascistas da mesma forma, e as palavras vão alçando voo, iniciando a batalha no ar.
              Guerras, ou antes das guerras, são os jogos do poder, a gente sente no ar, como alguma coisa queimando, quando os poderosos, e é preciso dizer que poderosos ou aqueles que se sentem assim, não são somente os ricos, se sentem em perigo. Deixemos claro, não há, no entanto, nenhuma razão para discriminar a riqueza.
                Na ótica capitalista, a riqueza é o fruto do mérito. Mas, o que é mérito na ótica capitalista? O mais esperto que negocia melhor, mesmo quando esse melhor nada mais é do que aproveitar o desespero do outro, que naufraga porque tentou ser mais esperto e se deu mal, ou então, simplesmente, não foi ganancioso, ou ocupa o lugar daquele que quer viver a sua vida em paz, ele, o esperto, está no momento certo, na hora certa. Esse é o mérito, o fato de ter bem nascido, tanto na origem familiar quanto no benefício da genética, mais apurada, com a inteligência específica para sobreviver no mundo atual, muitas vezes méritos por herdade, continuação de um modelo. Portanto, um mérito que se beneficia da meritocracia majoritariamente aceita. O mérito, na ótica capitalista, é aquele que tem mais opções de escolha, dentro do atual modelo de vida humano.
           E como contestar isso? Se o mundo capitalista visse a oportunidade de se fazer fortunas com poesia, teríamos estádios cheios a apreciar versos, e poetas seriam celebridades e ricos, e futebol, por exemplo, seria um esporte menor, jogado nas periferias. Logo, a mercadoria valiosa, ou a que se atribui um valor, é mero jogo de escolhas.
                O mais rico então existe em um mundo que favorece um tipo de riqueza.
              E ser rico é desprezível? Não, não é uma questão de demonizar quem tem dinheiro, desde que ele tenha sido ganho de forma honesta, e dentro das regras do relacionamento humano, sem a exploração desumana do outro, ou então quando não se ganhou de forma marginal, ajudando outros a enriquecerem, ou permanecerem ricos, ou usa essa riqueza para determinar o destino de todos.
            E ser rico, existir o mais rico, é ruim? Também não. Até porque muitos daqueles que são ricos enxergam o semelhante como seu igual, compreendem a agrura do outro, e nisso conta o respeito, ajuda aos mais carentes, e sempre existirão seres humanos com superioridade intelectual e sorte. Não sendo esse motivo para desprezar o outro.
            Se compreendermos que o trabalho está dividido por aquele que faz o que gosta, e ganha por isso, este sujeito é duas vezes mais feliz do que aquele que ganha para fazer o que não gosta, ou aquilo que ninguém gostaria de fazer. Portanto, as remunerações poderiam ser as mesmas, ou então não deveriam ser tão distantes.
              Mas, o rico não é elite? Também não. Não necessariamente a elite é a classe rica. Elite é um pensamento de preservação. É uma sobrevivência pelo poder. É um temor pela perda de uma situação que sabe ser insustentável, e por ela faz tudo para a manutenção, e para isso vale a classe média também, o medo de não poder sobreviver em outro modelo.
               E é aí que o cheiro da guerra se acumula no ar.
             Às vésperas da Revolução Francesa, a corte vivia em um outro espaço, completamente indiferente àquilo que acontecia nas ruas. Essa ignorância é um foco autista da própria riqueza. É tanta consciência, ou inconsciência, em relação ao outro, que a riqueza parece que torna o seu possuidor inexpugnável, inatacável.
          No caso do Brasil, a elite, que quer conservar o país em um formato em que ela se beneficia, está representada pelos donos de jornais e canais de comunicação, bancos, políticos representantes dos anteriores, e também uma classe média preconceituosa, achando que pensar igual ao rico a torna rica.
             Pensando bem, onde está a fonte de riqueza e poder de um canal de comunicação? Na tomada. Como se pode imaginar uma riqueza e um poder que pode acabar com o simples desligar de uma tomada? É fumaça. Para sobreviver, essa forma de negócio precisa de bajuladores, ou bajular alguém. A mercadoria de troca é a venda de prestígio, pela exposição da figura em fotos distribuídas pelo país, entregando prêmios, enfim, fazendo a tal diferença, como se pudesse determinar aqueles ou aquelas que podem fazer diferença, separando os bons dos maus.
             Na outra ponta da sustentação da elite, que se julga a pensadora de todos, está a claque. A claque é formada pelos pobres, e não somente os pobres na questão da renda, mas também os pobres pelo analfabetismo político, e pobres porque pensam como ricos e nem estão perto disso.
             Neste ponto, descobrimos o analfabeto político que não é aquele que está no lado da direita ou da esquerda ou do centro. O analfabeto político é aquele que repete o discurso de outro, ou outros, posicionados daquela mesma forma. O analfabeto político não raciocina por si mesmo, frequentemente repete o pensamento de alguém. Repete palavras na forma de ofensa, sem saber o sentido delas. Ele não tem argumento próprio. Surfa na onda e se sente confortado com os especialistas, que explicam para ele o que acontece no mundo, e, de preferência, nunca leu nenhum pensador do seu sentimento político, se o tem, apenas lê por tabela o que outros lhe dizem, aplaude o discurso falacioso, não quer separar o joio do trigo, decora pedaços sem compreender o contexto.
                Ele é um oprimido que passa para a posição de opressor, nas palavras de Paulo Freire. Ele quer consertar o país, mas não pela sua ótica, pela ótica daqueles que não querem mudar, ou então querem mudar, para continuar do mesmo jeito, ou buscam no outro a figura de um super-herói, que tem o poder de mudar o mundo, mais organizado e supostamente ordenado.
                A fórmula é tantas vezes repetida, quando essa elite quer conservar o que supostamente acha que lhe é de direito, que, um dia, ela não se sustenta mais. E a guerra, finalmente, começa a cheirar no ar. Os ódios extravasam, as manchetes repetem e reverberam aquilo que traz benefícios aos donos delas, bajulações de autoridades que podem manter o jogo, em um mundo cada vez mais sôfrego de celebrações, ignoram o que acontece no lado de fora, como a corte francesa se achava imune e a guerra começa a se instalar.
         As guerras se instalam quando um lado não mais suporta e o outro tenta dar suporte a atitudes inconfessáveis, e se enfraquece. A própria História se encarrega disso, o Tempo.
              É claro que na teatralização da democracia, deva existir o contraditório. Mas, quando esse contraditório permanece uma ilha da fantasia, como partidos que advogam o comunismo, socialismo, ridicularizados diante do mundo incontestável, aquele que realmente dá certo, os atores se comportam. Algum espaço é aberto, uma liberdade é permitida, e os oradores da oposição funcionam, fazem o seu papel.
          No entanto, quando esse contraditório assume um lugar, e, por ventura, começa a dar certo, mesmo abdicando de algumas ideias, e preservando por medo, respeito, aculturamento, os defensores de atitudes como estado mínimo, despersonalização de direitos trabalhistas, ele apenas conserva o ovo, achando que morre a serpente.
             Nossa formação de dirigentes, tanto na classe política, econômica, de serviços não advém das classes menos favorecidas. Ela provém de classes médias a abastadas, com seus discursos familiares, habituais e autoexplicativos. E quando advém de classes mais pobres, o oprimido passa a ser opressor, porque se convence do mérito, achando que sua experiência individual e única pode ser transportada para o coletivo, exemplos de superação, e não de oportunidades, de momentos certos, de horas certas, diferentes na genética, na unidade familiar, em relação aos seus iguais, de geografias diferentes.
         São bem recebidos em salões, tornam-se personagens de celebrações, são entrevistados, enfim, são iluminados por holofotes, esquecendo que nem todos os caminhos levam ao céu. Na meritocracia capitalista, aquele que sobe ao palco é saudado como se fosse um sobrevivente, uma exceção, e são comprados, pura e simplesmente, ou se vendem às luzes da ribalta.
               O grande irmão do norte está desviando sua rota, e, assim como na guerra fria, quando o lado comunista ruiu, as esquerdas ficaram sem discurso. Poderá estar acontecendo o inverso? O que poderá acontecer com a elite que quer preservar o nosso modelo político e econômico, sem a sustentação de uma ideologia externa? Uma guerra acontece antes da guerra, e é quando algum lado se enfraquece, e o outro não suporta mais.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura