Contos

No meio do picadeiro

     Nestor. Ah! Nestor, por que diabos você foi parar neste lugar! – pensava o lavador de elefantes, que foi entregador de pizzas, lavador de carros, agora estava no circo, que nada tinha de graça e se entregava a palhaçadas pelo interior do estado. Pensava ele, pensava sobre tudo, pensava a toda hora, principalmente quando perambulava pelo picadeiro deserto, a arrumar os utensílios que os artistas usaram, limpando as pipocas e os sacos vazios jogados pelo respeitável público embaixo das arquibancadas.
     Apesar de que uma vez substituíra o palhaço Caracol, uma vez que ele tinha pego uma gripe, mas que era uma paixonite qualquer por uma equilibrista, mas que o dono do circo descobrira meio tarde, que era mesmo a sua filha. Mandou a filha para o Rio e quase o pobre do Caracol para o hospital. No final, ficou por ali mesmo, cuidando das feridas, enquanto isso ele, o Nestor, aquele mesmo que cuidava da comida dos leões, de espanar a lona do circo, e nas horas vagas olhar as trapezistas peladas, vestindo as roupas apertadas, era o pau-para-toda-obra.
     É claro que, como todo mundo, até mesmo aquele mundo que cercava de cadeiras apinhadas o picadeiro, quer dizer, muitas vezes não… ou melhor, muitas vezes sim, ele também tinha as suas preferências. Não as mesmas preferências que as crianças tinham pelos palhaços.
     Uma delas era especial – Giovana – que subia pelas cordas, amarrada nos cabelos, a se debruçar no ar, se contorcendo debaixo das luzes. Quer dizer, Giovana era Francisca Soares, que não era mulata, era até bem branquinha, nordestina de olhos verdes, como tantas de holandeses tiradas de séculos atrás. Não que o Nestor soubesse de história, mas de histórias que lhe contavam, inclusive a própria Giovana, ou melhor, Francisca, mesmo.
     Por ela era apaixonado. Nem olhava pelas frestas semiabertas dos carros, como olhava as outras. Imaginava. A sua bunda redonda se enfiando na roupa apertada. Imaginava os contornos de seu corpo ali mesmo no picadeiro, escondido da platéia debaixo das luzes, que às vezes fazia aparecer para o público um pouco de sua participação.
     Virava a corda para que a sua Giovana pudesse se exibir. Ela se elevava para as alturas, levada pelas cordas do Nestor. Ela, a Giovana, subia, subia, e o contorno de sua bunda realçava na roupa branca, de odalisca. Não que o Nestor conhecesse alguma coisa de coisas lá da Arábia, ou qualquer coisa parecida. Foi Giovana que explicou enquanto vestia a roupa.
     Não que explicasse para o Nestor, mas o Nestor ouvira de uma explicação que ela dava para um espectador, que não resistiu de ver a bunda branca se elevando para o espaço, levada pela corda do Nestor.
     O moço apareceu com umas flores, ela agradeceu. Nestor jamais pensou em lhe dar flores, e por isso se danou de raiva.
     Imaginou o tal moço tirando a roupa de odalisca e vendo a Francisca que aparecia. Mas, em compensação, Nestor também via a roupa de Giovana cair das alturas. Ela subia, e Nestor elevava as cordas que prendiam dos seus cabelos amarrados, ela volteava e se despia lá das alturas, e na volta que a corda dava no picadeiro a Giovana jogava das alturas as peças de roupa para que Nestor as apanhasse. Não era bem o que Nestor fazia. Na verdade ele deixava que as peças de roupas atiradas das alturas lhe batessem no rosto.
     Era o seu momento de gozo, na frente de todos, ele tirava a roupa de Giovana, e não aparecia a Francisca, mas a própria Giovana. Giovana Martelli, ia esquecendo. Deveria ser russo com um ov no final. Nestor não entendia nada de russos, italianos. Giovana lhe contou. Ou melhor, contou para um rapazote de espinhas no rosto, que lhe trouxe uma caixa de chocolates. Cara burro, chocolates engordam. Giovana falou… para umas amigas. Não para o Nestor.
     À noite sonhava com as roupas de Francisca Giovana caindo do céu na direção do seu rosto. Ele as aparava, desafiando a gravidade. Era o momento mais glorioso, bem diferente das facas, dos pratos, dos tacos desajeitados que caíam no chão, observados pelo sorriso amarelo do grande Argolo, na verdade o José Cunha, um seu vizinho que ele apresentou para trabalhar no circo.
     O público adorava aqueles nomes. Mas Nestor achava que na verdade o locutor é que gostava de pronunciá-los. Um dia substituiu o palhaço, mas não falava mais nada além dos ais e uis que levava das porradas fingidas, mas que ele sentia de verdade, mas tinha vergonha de falar.
     Encontraria outro jeito de aparecer para Giovana? Não conhecia outro. Adorava Giovana.
     Mas um dia, desses nublados, cheios de tristeza, quando o circo acampou em Ipatinga, a sua Giovana foi embora, levada por um caminhoneiro de nome Messias, como tantos outros caminhoneiros. Pelo menos ela foi embora de uma forma divinal. Não que Nestor entendesse de religião. Foi o que ele ouviu dos outros artistas do circo, que entre uma bebida e outra, relembravam das carnes gostosas da Giovana Francisca que se elevavam no ar, e satisfaziam alguns deles em noites de solidão. Isso matava Nestor de raiva, afinal ele não soube dizer sobre religião, ou… bem, ele também não lembra como eles faziam para conseguir aquilo de bom de Giovana.
     Mas um dia apareceu Maria Odete. Pequenina de olhos claros, pelo clarinho, branquinha. Trapezista que o olhar clínico do dono do circo analisou e batizou, depois de alguns volteios da moça em pleno ar. Nestor foi o primeiro a olhar pelas frestas do carro onde a moça se trocava. Nossa! Nestor ficou apaixonado novamente. Até mesmo quando surpreendia a moça chorando debruçada na penteadeira, com o espelho iluminado de luzes coloridas. Não sabia o porquê.
     Veio o batizado da pequena e o dono do circo olhando para ela sugeriu… Conselhovisc, disse o Nestor, certo de ter dado uma em cheio. Queria misturar o conselho com os ovs dos russos. Não que Nestor soubesse alguma coisa de russo. O certo é que não sabia mesmo. O safanão que recebeu definiu, bem a propósito, a opinião do dono do circo, que pelo balde que passou voando junto com as gargalhadas dos outros afastavam Nestor de qualquer participação no batizado da moça. Ficou sendo Maritza Ondenovisc. Pelo menos, pensou Nestor, o visc acertara, assim como o sorriso compreensivo da moça que veio logo atrás do balde e das gargalhadas.
     Nestor se apaixonou novamente. Dessa vez não aparava as roupas que caíam do céu, do corpo de Maria Maritza. Dava gosto de ver os volteios dela no ar. Nestor se imaginava aparando a moça no ar depois do duplo mortal.
     Mas, dessa vez, Nestor resolveu olhar mais vezes a menina nua, por dentro das frestas do carro. Afinal se fosse embora ele poderia guardar a sua imagem totalmente nua, não seria como Giovana Francisca que foi embora e Nestor só guardava a imaginação.
     Uma noite a Maria Maritza dormia e Nestor ouviu o gemido. Entrou no carro para ver o que acontecia. Na sombra, Maria não tinha percebido o que Nestor fazia. Confundira Nestor com outro alguém e Nestor teve a primeira noite de amor de sua vida. De repente, como num sonho virava o trapezista que aparava Maritza Maria no ar, e caía do meio da cama.
     De manhã, Maritza Maria não o reconheceu. Só cumprimentou Nestor. Isso não o magoou. O que deixou Nestor chateado foi ver Maritza Maria passar no seu passo cadenciado, um pouco triste, na direção do picadeiro. Quem sabe mais um treinamento.
     No meio do circo, lá do alto do picadeiro a moça subiu as escadas lentamente. Nestor logo correu para armar a rede de proteção. Afinal, ele era o Nestor, o serviço dele era aquele.
     Enquanto armava a rede, Nestor viu cair ao seu lado as roupas que Maria Maritza usava. Ficou chateado, gostaria de recebê-las no rosto, mas reparou que o fardo seria pesado. Maria Maritza estava junto delas, o rosto ensanguentado pela queda. Gritou. Corre-corre, gente empurrando o Nestor. Sai para lá, imprestável. Lerdo.
     A tristeza de Nestor deveria durar pouco. Não durou.
     Logo depois foi brindado pela figura que apareceu com uma mala de papelão, grande olhar de curiosidade. Nestor olhou a menina e apontou para o caminhão do dono do circo. Viu-a bater na porta e ser recebida. Tentou esboçar um gesto qualquer, um dedo levantado no ar, mas continuou a varrer o pátio. Tinha muito trabalho. O circo estava de mudança.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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