Crônicas

Somente uma frase

        Uma frase nos leva ao infinito, parafraseio Nelson Rodrigues. Mas como? Quando alguém começa a falar tudo aquilo que lhe vem à cabeça, de uma forma inebriante carrega a todos em volta em um turbilhão de acontecimentos; a frase tem o mesmo efeito, palavras podem mudar o mundo e, se ditas sem pensar, podem arrasá-lo.
      A solução não está onde começa, o problema é onde vai terminar. E é assim mesmo, como uma onda de encadeamentos de palavras, inicialmente mal organizadas, que o pensamento flui no papel, como o rio arrastando as margens, carregando os matos, os homens e o escrevedor descarregando suas tristezas, suas alegrias, seus demônios ou suas canduras.
       Ela pode começar com uma simples observação, alguma coisa lida, alguma coisa ouvida num entremear de conversas, de cochichos, do ouvir dizer, da boca da vizinha, da comadre, do vendedor de biscoitos, num comentário irônico do jornaleiro, e até mesmo no olhar meio de lado, crítico, preconceituoso do trocador de ônibus com o passageiro farto de carnes que se espreme na roleta do veículo.
        Nada se lhe escapa, dada à sua infinitude de exprimir qualquer pensamento, seja ele pecaminoso, jocoso, maneiroso, elegante ou rude: a frase tudo comporta. E, por isso mesmo, não pode ser comportada a ponto de ser censurada, surrada, amarrotada, ela mesma nunca pode ser jogada fora e ignorada, como se nunca tivesse existido. Uma frase que exprime o pensamento existe antes do início dos tempos, dela, acontecer. Se forem formadas por palavras, elas primeiro existiram na sua forma: no princípio era o verbo e dele, somente dele, veio a luz.
       E uma frase pode iluminar um pensamento, dita com sabedoria e cadência perfeita. Pode apagá-lo, causando desconforto ao locutor que vos fala, por uma imprudência pecaminosa de organizá-la sem uma coerência mínima. Com isso ela não perdoa e larga o então proprietário dela em maus lençóis.
        Não dita, ela dorme sossegada para os ouvidos, mas perturbadora para aquele ou aquela que resolveu fruí-la, soltá-la das amarras do “encéfalo absconso que a constringe”*.
       Às vezes são difíceis de entender. Não por culpa dela, mas daquele que ousou elaborar um pensamento além da sua própria capacidade de pensá-lo. Faltam-lhe palavras e esse detalhe é crucial para uma frase. Ela não se constrói e perdura como uma parede pendurada no ar, sem se preocupar com o abate da queda. Ela desaba e leva junto o criador.
       Ela pode ser simplesmente uma palavra: Aja! E o efeito é colossal. É como ser largado em um campo aberto e uma ordem disparada; faz o interlocutor se perguntar: “E agora, José?”*
        Para aqueles que não conhecem o seu manuseio, que se prendem apenas aos detalhes técnicos, organizados segundo as tábulas de livros, a tarefa se expande de dificuldades.
        Para outros ela tem somente uma direção: para onde o nariz aponta. Esses se dobram à imaginação e entram de cabeça no argumento e abraçam a fantasia. Para esses dá-se o nome de escritores, poetas e aventureiros.

* Augusto dos Anjos, A Ideia.
* Carlos Drummond de Andrade
Fonte da foto: https://morguefile.com/creative/sssh221
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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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