Crônicas

Quarentena e abstinência

      A palavra quarentena, hoje, domina todo o cenário mundial. As pessoas estão antenadas, linkadas no termo e, ao mesmo tempo, isoladas dentro de seus lares. O mundo está conectado porque todos procuram as notícias, enquanto os motoboys dominam as ruas, acompanhados por aqueles que necessitam trabalhar; as ruas estão paralisadas.
        Todos sofremos, também, da abstinência da ida ao supermercado, aos restaurantes, a um passeio no final de tarde, até a praia, à academia e um papo com os amigos em um bar.
        Porém, a palavra que me retém é a abstinência, dentre as duas. E, com ela, a companhia ao meu lado. Sim, porque o caso é grave e algumas vezes um pouco assustador. Vou explicar.
       Estou em casa com uma mulher com abstinência de chocolates e sorvetes. Parece brincadeira mas não é. Cada vez mais, a decepção de abrir a embalagem plástica de sorvete, pela enésima vez, e, nela, encontrar o feijão congelado eleva a angústia. Não, existe ainda a miragem desértica de imaginar que aquilo seria sorvete de cacau 100%, talvez meio amargo, quem sabe. Uma abstinência em busca de algo doce pelo ar. Isso me lembra um desenho do Tom, o gato, e o Tweet, aquele canarinho, quando, às vezes, formavam uma dupla amistosa. Lembro um episódio em que a vovó, então a dona deles, deixou-os em uma cabana isolada pela neve e foi em busca de comida. O Tom ficou preocupado com a falta de alimentos pela demora da vovó. E foi tranquilizado pelo canarinho, que lhe disse que estavam servidos de comida, porém, somente alpiste havia ali. O Tom ficou desesperado e lutou contra a tentação de devorar o companheiro.
        Seria mais ou menos isso, se a abstinência aqui em casa, também pela dieta açucareira minha, e a total inexistência de algo doce em casa não estabelecessem a mesma relação.
        Algumas vezes, fico um pouco preocupado com o excesso de carinho com os companheiros de quatro patas e com ela, a minha abstinente, chamando-os, carinhosamente, de meus docinhos de coco. O olhar é um pouco, ou melhor, temerário.
        Aquele olhar perdido de alguém que procura o chocolate no ar, fazendo pasta de amendoim enroladinha no pão integral, imaginando uma língua de sogra. Refleti, assim, pela sobrevivência de ambos (no caso, eu incluído), que evitaria os filmes água com açúcar, diálogos melosos, músicas melodiosas (que vem de algo meloso) e a Luísa Mel sendo bloqueada, nem pensar, e nem uma palavra sobre a minha taxa de glicose, que está um pouco alta, para não me converter em algo comestível. O açúcar mascavo, escondido no fundo do armário, seria uma tentativa última de barganha, para conter essa ânsia.
        Uma dessas noites acordei, no meio da noite, suando frio, com um sonho. Ou pesadelo? Ela, vindo de gatinhas na minha direção, dizendo.
        – Docinho, sabe em que estou pensando?
        E eu pensei lá, nos meus sonhos temerários:
        – Que o companheirismo permaneça. Mas tem aquela coisa do até que a morte nos separe, ou a quarentena.
        Despertei me perguntando: De onde virá a salvação? No desenho, a vovó chegou, finalmente, e trouxe mais alpiste, para desespero do Tom.
        E ainda tem a Páscoa… estou preocupado.
        A saga continua.

Fonte da foto: https://pt.dreamstime.com/starush_info
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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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