Premiados

Prêmio UFF 2012

     E, por último, no prêmio Uff de 2012, com o tema: O contador de histórias, o conto que fala de uma mulher que chega em casa e, sem perceber que era olhada por outras janelas, se despe e dorme em um sofá, sendo descrita por um fotógrafo, um pintor, e um voyeur, e não sendo por um escritor, que fica sem inspiração. Essa inspiração me veio quando resolvi colocar no google a seguinte pesquisa: mulheres dormindo, e, nas imagens uma mulher despojada em um sofá.

TRÊS FORMAS DE AMAR E UMA AUSÊNCIA

     Rebeca, quando chegou naquela tarde, sentia o peso da bolsa e das pálpebras acontecerem ao mesmo tempo. As duas, ou melhor, as três visualizaram apenas o sofá caramelo com almofadas largas e aconchegantes, de braços abertos sobre a paliçada de bambu, como um palco iluminado diante da janela.
     Ela se desfez da blusa por cima de uma suave camiseta, e trocou a calça pesada por um short. Entre a camiseta e o short apenas um umbigo se mostrava saliente ao mundo. Adormecendo logo depois, os olhos cerrados como um risco infinito definia o tamanho de seu sono.
     Conseguiu adormecer como uma deusa, imaginando que as deusas adormecem ou fecham os olhos imaginando as coisas que uma deusa deva imaginar.
     Mas claro que toda deusa tem seus adeptos e Rebeca não poderia fugir disso. Ela se desfez no inesperado revelado por uma janela, e por isso se transformou na beleza. Mais do que isso, o seu despojamento sem nenhum treino, motivo, razão, simplesmente o sono a transformou no objeto de desejo, como somente uma mulher dormindo pode se transformar.
     Jofre, um pintor, lançador de ideias de aquarela, diante de uma tela em branco, teimava em pedir ao cérebro um motivo para pintar. O vento, que passava entre os prédios como um arauto, redemoinhou alguma coisa em seu ouvido, e, ao virar para a esquerda, ele encontra Rebeca dormindo.
     Não sabia se era o jeito com que colocara um dos braços sobre o rosto e o outro por baixo da almofada, como um inútil gesto de defesa, a linha sinuosa que começava no alto da cabeça continuando pelos cabelos longos e escorridos, elevando-se nos ombros, descendo até o início dos quadris, subindo abruptamente para uma descida suave até o final dos pés descalços; o que despertou nele um sentido de beleza.
     Essa Rebeca de frente para ele, que a qualquer momento poderia abrir os olhos e descobri-lo, o fez frenético pincelar na tela aquele momento mágico. Deu início a um agitar de suas mãos, como a procurar o melhor ângulo em que pudesse retratar, registrar, digitar o momento em que uma deusa se entrega ao sono, ou somente ao deleite de ser observada à distância segura de pretendentes. Ou quando virou a tela, colocando-a em posição horizontal, para conseguir o melhor espaço para enquadrar toda a beleza que dormia, tudo numa fração de segundos até imprimir a irregularidade sensual dela.
     A luz do sol, precisa naquela tarde, iluminava o palco onde o objeto de desejo estava. Jofre achou sua tela um espaço pequeno e retirou quadros da parede e desenhou como se somente um espaço maior pudesse registrar um universo inteiro, ou parte ínfima dele, descrevendo toda a visão de que se apossara.
     Não bastou para ele simplesmente registrar em traços, riscos, aparentemente incoerentes a linha sinuosa de Rebeca. Colocou-a sobre um espaço branco povoado de flores que se harmonizavam sobre o corpo desenhado da deusa. Na mesma disposição largada em seu sofá caramelo, Jofre dispôs a ingenuidade adormecida sobre um campo florido, como se a sua presença ali fora um acaso do destino, o mesmo acaso com que descobrira aquelas formas, aquela suavidade docemente debruçada sobre almofadas.
     De pé em cima de uma mesa, Jofre desferia pinceladas na parede. Abstraindo do real onde adormecia Rebeca, Jofre a transportava para outra realidade, guardada dos observadores comuns, que não entenderiam que aquele objeto inocentemente largado não pertencia a lugar algum. Que aquela beleza somente poderia ser entendida quando vivesse em outra realidade, adormecida em outra forma de se deixar desfalecer.
     Não era um corpo o que estava sendo retratado, mas a sensação dele simplesmente existir, de aparecer instantâneo, em um momento de falência criativa, acordando o pintor.
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     Linus preparava sua máquina fotográfica e ao focá-la para fora do seu quarto, repassando as janelas do prédio em frente, inadvertidamente clicou sobre o quarto de Rebeca, docemente entregue à observação. Era tudo um composto pelo pequeno quarto, onde os objetos divinamente largados sobre as almofadas combinavam uma bolsa, um livro, algumas roupas e sapatos em desalinho, entregues também ao sono companheiro, como um despojo de guerra, guerra de uma beleza que combinava e dava brilho a um ambiente.
     Não bastava a ele tão somente baixar estupefato a câmera e olhá-la. Somente a câmera poderia ser o único instrumento. Mas, dessa vez, não é Linus quem decide a melhor pose, a melhor iluminação. Em uma situação inversa, Rebeca, adormecida nas almofadas caramelo, decide a pose única. O objeto de desejo é quem comanda o show, e cabe a Linus achar, adequar, encontrar o lugar de onde possa congelar para todo o sempre o instante único.
     Um ambiente capturado, enclausurado dentro de um instrumento, para ser mostrado e vivido, como o exemplo de que a melhor fotografia é o momento que não se perdeu, que não se deixou passar. Nada poderia ser feito que não fosse feito a partir do olhar da máquina, a única prova testemunhal de que a beleza existe, e ela existe somente quando se deixa admirar, traz para os observadores o verdadeiro êxtase de se estar mirando para algo infinitamente belo. E nada poderia ser mais completo do que os cabelos, os braços em atitude angelical, a roupa que escondia e ao mesmo tempo deixava perceber o quanto de beleza havia por dentro dela.
     Rebeca decidira dormir, e com ela tudo o que fazia parte dela. Todo esse conjunto era o êxtase de Linus. A sua arte estava em colocar dentro de um pequeno quadrado toda a existência docemente largada no sofá de almofadas caramelo. Em quase pânico criativo sentou no chão, debaixo de sua janela, e pôs-se a admirar a sucessão de fotografias que registrara, sorrindo com a entrada generosa da luz do sol da tarde, apimentando as cores da sua modelo.
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     Cláudio sondava com seu binóculo de longo alcance todas as janelas em frente. A beleza, para ele, residia no inesperado da descoberta, da incursão nas janelas abertas em confiança absoluta do anonimato. Em sua mente, o que era belo era descobrir o momento exato em que as mulheres entregavam o seu corpo à confiança de não serem vistas. Cláudio tinha no seu aparato tecnológico o disfarce perfeito de penetrar vigilante, sorrateiro, como uma serpente visual adentro da intimidade de um quarto.
     As lentes poderosas capturaram o momento de Rebeca. Suas mãos pararam e um manejar de dedos hábeis deu o toque final no foco perfeito. Seus dedos finos ondulavam o botão como se ele, pessoalmente, pudesse tocar a figura inerte de Rebeca flutuando no seu sofá. Seus lábios ficaram sedentos, entreabertos, como se fosse um garimpeiro adentrando uma mata fechada e subitamente encontrasse um rio onde pedras preciosas ficaram ali inertes por séculos à espera de um sortudo.
     Ele se considerava assim. Suas lentes ficaram paralisadas diante da descoberta.
     Seguro no seu anonimato, Cláudio aumentava o zoom de seu equipamento chegando perto do colo de Rebeca, tentando descobrir um pedaço de seio mal protegido, antever um pedaço de coxa, uma posição mais erótica, mas Rebeca, absolutamente, não estava entregue. O que realçava sua beleza não era o fato de estar seminua, mas simplesmente de poder esconder e ao mesmo tempo mostrar ao olhar experiente dele toda a fortuna que estava ali escondida.
     Era justamente na vestimenta de Rebeca, ou mesmo na sua roupa mínima, vivendo em seu cômodo protegido, onde residia todo o fetiche de Cláudio. Para ele, não havia significado em tê-la descoberto nua, completamente revelada. Para ele, era no imaginário, na decodificação das pequenas peças de roupa que estava o objeto de desejo.
     Como bom voyeur, catalogava mais aquela janela dentre todo um arsenal de endereços que tinha ao lado. Ritualmente, obedecia aos horários em que seus objetos de desejo se mostravam exuberantes. A incitação do desejo não estava na acessibilidade que poderia ter de Rebeca, mas justamente por essa falta de acessibilidade, por ela estar longe e ao mesmo tempo tão perto. O seu desejo estava justamente na impossibilidade de tê-la, e não tê-la para sempre fazia seu próprio desejo se perpetuar.
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     Jofre enfrentara a parede branca de seu apartamento. Linus registrava cada possível movimento de Rebeca. Cláudio se entregava a uma fantasia irrealizável. Contam, para si mesmos, de formas diferentes, aquilo que lhes inspira.
     Alfredo, morador do apartamento de cima, privado de qualquer outro contato humano onde imaginava que o silêncio e tão somente sua imaginação seriam suficientes, estava na sua sala, isolado do mundo, defronte ao mar, tendo diante de si uma tela de computador em branco, uma busca por ideias e uma janela vazia para o nada.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura