Premiados

Prêmio UFF 2009

    Em 2009, a UFF lança o tema: Um dia, uma noite… Paris, em homenagem ao ano Brasil, França. As ideias começaram a nascer e procurei um nome que vinculasse Brasil e França. A primeira coisa foi Santos Dumont. E por que não Júlio Verne, um dos meus autores favoritos, fazendo a comunhão de descobertas? No entanto, pesquisando, descobri que um autor americano já havia escrito um romance chamado “O jornalista, o inventor e o escritor”.
     Bem, o jeito foi mudar a ideia. Imaginei aquela Paris, no século XIX, sendo reconstruída, aparecendo os primeiros bulevares, a belle-époque, os inventores sendo os príncipes encantados da época, e descobri, também, que era uma cidade injusta, onde as mulheres se prostituíam, os poetas ficavam jogados nas sarjetas, embriagados, drogados. Então, por que não, um homem comum, apaixonado, que trabalhasse para Santos Dumont, e eu não precisaria colocá-lo como principal personagem, que caminhava por aquela Paris em escombros, pensando no seu amor, uma jovem prostituta, apaixonada por Santos Dumont. Como Antoine resolveria aquilo?

DOIS AMANTES SOBRE PARIS

     De todas as agruras que acometiam Antoine, sem dúvida, a maior delas era o amor não correspondido de sua vizinha, Claire. Não bastassem os apertos não só dos parafusos, confusos, que lhe eram ordenados por Monsieur Saché nas oficinas de Monsieur Santôs, Antoine ainda vivia os seus momentos de angústia com as idas e vindas de Claire, saindo ao entardecer e voltando com a aurora. Na aurora, ele a caminho das oficinas, ela vinda do submundo de Paris, da prostituição de Paris.
     Na sua ida apressada, Antoine era observado pelos reclames, a pressa dos parisienses, as grandes avenidas abertas, as passagens das galerias, as vitrines de graças perdidas com a ausência da luminosidade noturna, as buzinas dos automóveis, novos habitantes de uma Paris que refletia as imagens da sua gente nos espelhos das lojas.
     Bulevares, cafés, as modas nos corpos de mulheres passantes, guarda-sois bem pouco práticos, rodados graciosamente, absorviam Antoine, lembrando de Claire desde o subúrbio onde moravam até o grande centro transformado da cidade.
     Distinguiu o Pegeout cupê de 3,5 HP, parado em frente ao edifício onde Monsieur Santôs morava, e uma multidão aguardando a sua saída. Isso era sinal de que precisava correr para não ser surpreendido com a chegada do patrão. Além disso, havia Monsieur Saché. Estavam atrasados com o projeto. Monsieur Santôs era um dandi, louco e envolvente, de pequena estatura, e ridículos cabelos partidos ao meio, como os das mulheres, que enfiara na cabeça que poderia rodar pelo mundo apenas com um balão cheio de gás, pendurado em uma pequena gaiola e um chapéu engraçado na cabeça.
     Concorria a um prêmio oferecido por outro estrangeiro. Os trabalhos deveriam terminar no próximo 19 de outubro. Paris vibrava. Vislumbrou a grande torre de metal de Monsieur Eiffel, inerte no imenso espaço parisiense, sem nenhuma serventia, a não ser servir de ponto de chegada para loucos voadores. Mas esses loucos é que agradavam Claire. Eram os cavaleiros modernos, os príncipes que encantavam. E sobre eles, principalmente Monsieur Santôs, Claire falava apaixonadamente. Antoine gostaria de ser como ele para levar Claire pelos ares.
     Os trapeiros terminavam o serviço de limpeza das ruas e por pouco não levavam em seus balaios os bêbados e drogados que jaziam nas calçadas, alguns já acordados com os cabelos em alvoroço, imaginando que toda a transformação da cidade não podia ser de um jeito que os deslocasse simplesmente do mundo, colocando em seus lugares novos donos de riqueza. Paris era uma imensa mercadoria à venda, para poucos.
     Paris sobrevivia com a troca de um bem por outro: um trabalho por dinheiro, o próprio corpo por dinheiro. Todos precisavam trabalhar de algum modo, para sobreviver Paris. Lembrou de Claire.
     Alguns dias atrás conseguira conversar com a moça, e ela tagarelava o tempo todo falando do patrão e da inveja que sentia da sua proximidade com ele: Monsieur Santôs. Aquele homenzinho ocupava a mente dos parisienses por sua coragem em se alçar pelos ares, sofrendo acidentes, o ideal do aventureiro, rico, inteligente e, por que não, charmoso.
     Lembrava dos olhos brilhantes de Claire, olhando embevecida para o céu de Paris a imaginar histórias com Monsieur Santôs.
     Antoine gostaria de arrancar um pouco do amor de Claire. Para isso, deveria ser para ela mais do que o Antoine, aprendiz de mecânico no hangar de Monsieur Santôs. O mundo se transformava, e ainda as histórias extraordinárias de Monsieur Verne, contaminavam um mundo que ele não podia entender, mas via irreversível. Os cavaleiros e amantes modernos haviam descido de seus cavalos, despido suas armaduras e eram agora os empreendedores de um novo mundo. Paris, a morada dos deuses modernos.
     Era esse o ideal romântico que habitava a mente de Claire. Antoine queria ser um deles, faltava-lhe o dinheiro e não a coragem. Antoine jamais poderia arrancar qualquer presente das vitrines para colocar aos pés de Claire e convencê-la de seu amor.
     Faltava-lhe o dinheiro até mesmo para comprar o amor de Claire, que se oferecia nos bulevares, iluminados como archotes para o céu de Paris.
     Nas oficinas, complicados projetos jaziam sobre mesas, debruçados sobre riscos que Antoine mal entendia, os técnicos tentavam desvendar as armadilhas da mecânica.
     No lado de fora, um imenso balão armado olhava enigmaticamente para Antoine. Aquele dia não seria um dia qualquer, pensava Antoine.
     Monsieur Santôs equipou o aparato e olhando para a sua equipe convidou quem gostaria de passear com ele. Antoine, movido por um êxtase se ofereceu. Todos elogiaram a sua coragem, e, principalmente o patrão, que admirava sobremaneira as pessoas que assim agiam.
     Observava com visível curiosidade como o patrão manejava os cordames e administrava o lastro para que o balão alçasse voo. Aqueles eram os momentos de lazer de Monsieur Santôs, que se entregava agora a desafios maiores. O pequeno balão, de seda japonesa, manejava com graça os ventos. Uma pequena hélice podia direcionar o artefato. Seu patrão desceu em plena Paris para tomar uma xícara de chá em um dos bulevares, diante de uma multidão boquiaberta. E ele, passageiro privilegiado, sentou-se ao lado de Monsieur Santôs na pequena mesa do café e sorria ao lado daquele homem pequeno, de chapéu invertido e grossos bigodes e jeito fino de se conduzir.
     Quanto Claire não daria por uma viagem como aquela? – disse para Monsieur Santôs, que ouvia atentamente a história amorosa de seu empregado.
     Voltaram e durante o trajeto Monsieur Santôs ia desfazendo todas as curiosidades de Antoine sobre o manejo da aeronave, com um leve sorriso na boca. O dia não transcorria normal para Antoine. Sua cabeça rodava, e constantemente Saché chamava-lhe a atenção para o serviço. O balão permaneceu inflado no lado externo da oficina, por ordem de Monsieur Santôs que pensava utilizá-lo novamente, para seu passeio noturno.
     A noite chegava e Antoine imaginava Claire saindo da casa para o seu trabalho nas ruas e avenidas. Seguira-a algumas vezes, e sabia exatamente onde ela ficava.
     Encerrou os trabalhos no hangar; aguardou próximo da imensa oficina e todos se retiraram. Monsieur Santôs não retornara. Tudo escureceu e Antoine voltou à oficina.
     Preencheu com gás de iluminação o pequeno motor. O objeto voador começava a tomar forma e Antoine subiu para dentro da pequena barcaça. Um chapéu de abas caídas estava no piso da pequena cabine. Vestiu-o. Protegeu-se com um paletó contra o frio da noite sem estrelas da Paris que começava a acender-se e iluminar o céu.
     Sabia exatamente para onde se dirigiria. O balão alçou voo suavemente e foi em direção à cidade iluminada. O pequeno motor que ajudara a adaptar já não tinha nenhum mistério para ele. Um vento muito suave deixara-o alguns bons metros acima dos telhados. As pessoas abaixo não se preocupavam em olhar para o céu, somente os bêbados, mendigos, poetas olhavam para o céu, caídos já no início da noite.
     Antoine aproximou-se do bulevar onde Claire costumava ficar. Desceu suavemente na rua, e uma multidão aproximou-se, imaginando Monsieur Santôs em algumas de suas viagens noturnas.
     Não se enganou ao vislumbrar o rosto querido de Claire aproximar-se, embevecida com a proximidade com Monsieur Santôs. O chapéu invertido encobria o rosto de Antoine e ele fez sinal para Claire. A moça mal podia acreditar, e sorridente e invejada foi ajudada a se instalar na pequena barcaça. Sem dizer palavras, Antoine alçou voo com o balão e abraçado à Claire se sobrepôs à Paris noturna.
     O vento frio castigava o rosto avermelhado de Claire. Ela mal podia se conter e abraçava com sofreguidão seu cavaleiro noturno. Antoine mal podia controlar seus impulsos ao ter finalmente nos braços o rosto fino e suave da amada.
     O Champs Élysées, a Torre Eiffel, Montmartre, desfilavam iluminados pelos olhos de Claire. A luminosidade da cidade competia com a luz de excitação que saía dos seus olhos. Nenhuma palavra pronunciaram. Os braços de Claire envolviam o valente príncipe dos ares. A sombrinha desnecessária de Claire caíra em direção às largas avenidas abaixo.
     O trânsito confuso era somente um burburinho abaixo. A escuridão à frente não parecia desvanecer a coragem dos dois. O perfume de Claire se espalhava pela noite. As estrelas já apareciam para testemunhar o romance das alturas.
     Sobrevoando uma Paris frenética, o balão pairava no ar ao sabor do vento, carregado suavemente no perímetro da cidade. Como uma armadilha celeste o artefato e o leve balouçar da barcaça rodeava Paris. Burgueses se envolviam em quatro paredes, bêbados, poetas e flanneries eram envolvidos pela multidão. Paris reservara uma noite já estrelada e a sua iluminação cumpliciosa para dois amantes, e providenciara um leito iluminado sob eles.
     As idas e vindas se sucediam, palavras eram desnecessárias para a Paris esfuziante. O herói moderno, disfarce de um príncipe antigo na alma, recebeu, finalmente, Claire com todo amor que um herói merece, longamente, por mais curta que seja a noite, com Paris por testemunha, iluminada no sorriso da iluminação farta que jorrava para o alto, vinda das suas avenidas iluminadas como archotes, das vitrines onde Antoine jamais poderia arrancar qualquer presente para colocar aos pés de Claire e convencê-la de seu amor.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura