Premiados

Prêmio UFF 2008

Em 2008, a UFF lançou o tema de seu concurso: Planeta Terra, 2050. A primeira coisa que imaginei foi elaborar um tema de ficção científica. No entanto, lembrei de uma entrevista onde o entrevistado discorria sobre o mundo no futuro. Ele acreditava que no futuro os carros no futuro não voariam (seria uma loucura), e que apenas as coisas seriam mais inteligentes, prédios, os próprios carros etc.

     Imaginei, então, como seria um homem, já idoso, que vivera o período atual, criança, e convivia naquele futuro, refletindo sobre os dois mundos e comparando-os, relatando, principalmente, a solidão de pessoas voltadas para si mesmas, competindo.

SOLITÁRIO 2050

     Frederico olhava pela janela de seu pequeno apartamento. Aos oitenta e cinco anos, ainda forte e bem disposto, não deixava de ser parte de uma estatística perversa naqueles meados do século XXI: fazia parte de 8% por cento da população idosa do mundo.
     Nas mãos, uma convocação do governo para missão voluntária, sob a ameaça de redução de benefícios, que conseguira depois de tantos anos de trabalho. Iria, finalmente, morrer trabalhando!
     Olhava o baixo volume de trânsito. Ficava imaginando a quantidade de pessoas que se movimentavam embaixo da terra. A população mundial se enterrou para baixo da terra.
     Lembrava quando, com os amigos de infância, imaginava o futuro. O futuro que agora vislumbrava de sua janela. Os carros não voavam. Imagine a confusão e a barafunda que seria se um bando de loucos voasse com seus veículos? Nem a mais alta tecnologia controlou a loucura humana.
     Prédios inteligentes… Inclusive, uma das medidas mais inteligentes dos governos, a partir de 2020, foi o incentivo para indústrias de reciclagem. Em um acordo, os governantes decidiram dar incentivos fiscais por cem anos para qualquer indústria que se dedicasse à reciclagem, desde que contratassem um número de pessoas ainda sem preparação profissional e as tirasse da pobreza, assumindo aposentadoria e benefícios sociais. Ele era um dos remanescentes dos chamados “aposentados oficiais”.
     Vivia em uma casa de retiro, apart-hotéis com todos os serviços. Apesar de tudo ele era um privilegiado. Toda a roupa suja era jogada pelos dutos do edifício, devidamente embaladas com seu nome. No dia seguinte, pela manhã, lá estava no seu corredor um pacote com toda a roupa, devidamente limpa.
     Lembrava da mãe lavando roupa no tanque e agora aquilo. Que azar sua mãe ter nascido naquela época! Mas, em compensação, nunca mais sentira o cheirinho de sabão de coco.
     Mas toda aquela tecnologia não conseguiu resolver um problema do homem: a solidão, e as guerras religiosas no Oriente Médio tinham dizimado uma quantidade de homens e provocou uma escassez de mão-de-obra e de maridos. Até poderia sair por aí, conseguir umas mulheres que disputariam aquele coroa vaidoso e dono de si mesmo.
     A procura de mão de obra produziu uma alteração substancial nas políticas imigratórias. Os países mais desenvolvidos, dentre eles o Brasil, atraíam cada vez mais jovens. Em compensação, estes países pagavam para que os outros recebessem seus idosos, num verdadeiro acinte aos direitos das pessoas.
     Todo aquele que não tivesse uma renda suficiente, ou que não tivesse algum tipo de habilidade, era convidado a se retirar para o interior do país ou para o exterior, onde, a transferência de suas pensões trazia um pouco de renda para lugares mais pobres, com o desconto de um percentual nas contas-correntes. Isso mesmo, aquela coisa ainda não tinha acabado, a maldita tinha evoluído. Artigo de exportação.
     A longevidade trouxe uma solidão maior ainda. As pessoas se afastavam porque as famílias ficaram grandes demais, e cada uma tinha que cuidar de sua prole, não sobrando tempo para ouvir histórias. Só o rapazola, seu bisneto, que chegava de vez em quando de surpresa.
     Sempre mascando o seu chiclete, a roupa completamente metalizada, os cabelos e olhos pintados de cores diversas. Quando via uma dessas figuras atuando na política e falando de justiça social, tinha vontade de dar uma boa gargalhada.
     – Eu nem vou perguntar se seu pai concorda com isso! Até porque ele mesmo deu muito trabalho ao meu filho. Você sabia que eu já usei cabelo comprido?
     – Sei, você já falou? Conta outra.
     – Ontem, eu comi a camareira.
     – Legal. Ela gostou?
     – Não sei, ela não fala. Garoto maluco, aqui não tem camareira!
     – Ah! Não tem não? Aliás, o que é isso mesmo?
     – Era uma mulher que vinha arrumar os quartos.
     – É mesmo? Legal!
     – Não, é ilegal. É ilegal ter camareira, com essa escassez de mão de obra. Vai dizer que você não sabia disso também!
     – Que é ilegal? Não, não estou sabendo. Aliás, quero ir embora daqui, deste país!
     – Para onde, seu pedaço de debiloide?
     – Sei lá, qualquer lugar.
     – E a escola?
     – Continua lá.
     – Disso eu já sei, seu imprestável. Quando termina o curso? Qual era mesmo?
     – Quero me formar em Mixagem de Tecnologias. Eu quero me especializar em engenharia que estuda as inúmeras possibilidades de integrar tecnologias e conhecimentos, para formar idéias que se liguem entre si, e possa trazer benefícios para as pessoas.
     – Interessante. A velha matemática, a literatura, geografia, história…
     – Ora, vô! Como é que a gente vai ter tempo de aprender tudo isso? Deixa essa coisa para os idiotas que querem se especializar. Graças a eles, eu poderei juntar conhecimentos e mixar tudo, formando um novo conceito de vida, em que as pessoas já recebam tudo pronto.
     Frederico pensou: “Pronto para quê? Para morrer? Esse pessoal fala a mesma coisa, sempre!”.
     – E o seu pai e sua mãe? Como eles estão?
     – Estão viajando.
     – Foram juntos? Você não quis ir?
     – Foram separados. Claro que eu não quis ir!
     – Eu não consigo entender por quê?
     – Não entende porque não quer. O meu pai e a minha mãe não têm nenhuma obrigação de gostar de mim. Eles têm a vida deles e eu a minha, ora. Eu posso conversar com o meu aparelho e simular as conversas que eu quiser. Eu não fico sozinho.
     – Não?
     – Não. Quem se importa?
     – Eu! – disse Frederico com o rosto apreensivo.
     – Você? E por quê? Ah! Tudo bem, não interessa. Como você se sente? Não gosta de ficar sozinho?
     – Não. Eu não gosto.
     – Bobagem! Qual o problema de ficar sozinho? A gente acostuma. Ontem eu estive com uma namorada!
     – É mesmo! E então?
     – Ué, nada. Ela foi para a casa dela, cuidar da vida dela. Eu não tenho que casar. Qual o problema? O importante é que todos saibam caçar. É melhor do que ficar com uma mulher um tempo grande.
     – E filhos?
     – Se eu resolver ter um, escolho alguém e pronto.
     – E aí ele vai ser igual a você?
     – É.
     – E você não vai querer outras coisas?
     – Ah, sim! – disse com os olhos brilhando. Eu quero ter muitas mulheres, de preferência de vários lugares. Quero ter minha adega e obras de arte, para exibir aos amigos e poder conseguir mais mulheres, gastar tudo e pronto…
     – E você acha isso bom?
     – Claro, a gente veio ao mundo a passeio! Você não leu o último livro do Hans Silva?
     – Já ouvi falar.
     – Pois é a nova ordem no mundo. Isso sim é que viver!
     – Mas se você tiver filhos? Como eles vão viver?
     – É um problema deles.
     Passado algum tempo em silêncio, o jovem disse:
     – Bom! Já estou indo.
     Frederico ouviu a porta do pequeno apartamento fechar e olhou para a janela o final da tarde. Releu o papel da convocação do governo para um novo trabalho, desceu para o hall do prédio. Uma sala repleta de monitores, com microfones e fones de ouvido.
     Sentou-se, discou um número, e do outro lado uma voz feminina atendeu com alegria. Começou a tagarelar incessantemente sobre o seu dia, as suas conquistas e o seu trabalho. Frederico, pacientemente, conversava transmitindo uma felicidade, como se alegre estivesse.
     Depois de uma conversa de uma hora, desligou. Esfregou o rosto, angustiado.
     – O que foi? – uma voz, que parecia no comando, perguntou.
     – Nada. Tudo bem.
     – O seu telefonema das vinte horas foi cancelado. Se você quiser pode subir.
     – O que houve?
     – A sua confidente se suicidou.
     – É mesmo? Parecia bastante otimista ontem. Falou de uma viagem, uma promoção, um novo curso!
     – É. Era tudo mentira. Na verdade tinha sido demitida e foi considerada velha demais.
     – Mas com tanta falta de mão de obra!
     – Uma coisa é a falta de mão-de-obra, outra coisa as pessoas aceitarem qualquer trabalho.
     – Ela não aceitou?
     – Não. Dificilmente aceitam.
     Frederico subiu ao apartamento e olhou para a janela, da altura do seu andar nr. 35. Pensou: o que leva uma pessoa a se suicidar?  Por causa de um emprego? Olhou o horizonte e lembrou o tempo em que andava por aquelas ruas, então tão perigosas, mas ao mesmo tempo feitas de descobertas. Não, ele não queria se suicidar. Gostaria de aproveitar o passeio pela vida até o fim natural dela. Tinha lembranças de que em um tempo a vida era boa de um outro jeito. Tinha um referencial. Os novos moradores do mundo, não. Só lutavam para fingir que não estavam sós.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura