Crônicas

O último fio da vida

        Depois de viver uma vida inteira, cada um com seu pedaço, talvez exista, lá no final dela, um motivo para viver. Passamos anos e anos vendo coisas, vivenciando coisas, acontecimentos, felizes ou infelizes, passando por problemas, resolvendo-os ou sofrendo com eles. Passamos uma vida inteira de experiências inéditas, que lamentamos não poder repeti-las, já que conhecemos o caminho das pedras depois que passamos, ou achamos isso, e olhamos para o que vivemos tentando encontrar uma razão para tudo.
         Não há razão, não há entendimento, há somente uma vida que foi vivida com todos os seus percalços.
      Existem aqueles que teimam em continuar vivendo como se o amanhã sempre existisse e aqueles que vivem como se não houvesse ele. Existem os intempestivos, os aventureiros, os temerosos, os responsáveis e os irresponsáveis. Uma mistura de pensamentos, de atitudes, de maldades e de bondades. Somos uma mescla de tudo o que o ser humano pode produzir contra si e contra os outros, e contra a natureza.
         Há seres que no final da vida têm o poder de mudar tudo, e tentam, embora não vá viver para ver, há aqueles que no final da vida se vingam contra o tempo que já não olha para eles com a mesma benevolência. Não suportam o fracasso de chegar ao final de tudo.
       Há muitas maneiras de sobreviver: lutando, apanhando e batendo. Sendo honesto ou não, probo ou não. Não se importando com as consequências, mas vivendo a vida como ela é, ou tentando transformá-la.
         Mas não é só sobre sobrevivência. Porque sobrevivemos o tempo todo, ultrapassando os obstáculos, na medida do possível.
         No último fio da vida a consciência do ter vivido e o poder de contemplar tudo em volta com novos velhos olhos seria os últimos atos de sobrevivência.
        É como o viajante que não chega ao final do percurso, mas chega ao final do seu percurso. Que chegou até onde poderia ir. A sobrevivência está no ato de olhar em volta e ver o mundo com olhos diferentes. Com os olhos vivos e cansados do viajeiro ao final da viagem.
        É um estado de compreensão. Compreender o mundo de outra maneira. Parar na caminhada e pensar e examinar tudo em volta. Chega ao final uma luta insana por sobrevivência e pode-se compreender que a sobrevivência não é somente lutar por um espaço no mundo, mas estar em um espaço no mundo. Ocupá-lo como se não estivesse ali. Ver e ouvir mais, parar não pelo cansaço, mas pelo cansaço de tanto ouvir e fazer o que não se quer e o que não se deseja.
       É um tipo de nível que tenta ficar acima de tudo que passou. A parada é importante e inevitável. Não é uma espera pelo final, é chegar ao final de uma espera. Aguardar, pacientemente, a chegada do trem em uma estação perdida no tempo.
        Entender que a sobrevivência passa muito mais além do bem material que se consegue, mas ver e sentir o vento na viagem e não a ânsia por chegar.
        Nem todos podem viver isso e sobreviver com isso. É para poucos. Aqueles com dinheiro e poder ou não.
        No último fio da vida a gente, talvez, venha entender o que é viver. Se o último fio da vida fosse um começo, o novelo se desfaria da mesma maneira?

Origem da foto: Foto de Frank Albrecht en Unsplash 

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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