Contos

O jardim dos zé manés

      Consta que a população de Zé Manés sempre quis construir um imenso jardim no terreno que ficava ao lado do palacete dos Boaventura, e eles sempre diziam que aquilo seria um problema: onde já se viu um bando de Zé Manés achar que poderia construir um jardim naquele terreno? Simplesmente, ele poderia ser entregue à gente mais gabaritada, que eles conheciam no estrangeiro e que daria um melhor destino àquela riqueza.
        O problema do jardim sempre foi a da proximidade com o palacete dos Boaventura, que ficava ao lado. Teimosamente, os Zé Manés construíram o imenso jardim e ele se tornou público e aberto, frequentado por todos, o que desagradava, abertamente, aos Boaventura, donos do palacete. Assim, com o tempo, apesar da resistência dos Boaventura, os Zé Manés conseguiram construir, naquele espaço, um imenso jardim com vários tipos de plantas. E a construção começou a atiçar nos Boaventura, principalmente no velho patriarca, de que aquela boa ideia poderia lhes dar vantagem.

        Em um gesto de boa vontade, apesar da desconfiança de um grupo de Zé Manés, um dos Boaventura, o velho que fundara a dinastia, e que não se contentava com a baderna e os jogos de futebol que campeavam livremente pelas alamedas, e nem tampouco com o batuque de samba, as danças indecentes, segundo ele, resolveu propor ao Poder Público, e, nesse caso, teríamos que considerar que este poder, apesar de público, não tinha tanto poder assim, que fizesse uma modernização completa no local.
        Alguns grupos de Zé Manés perceberam a manobra, mas de nada adiantou, já que o poder dos Boaventura e a mão de ferro do velho patriarca sempre soaram mais forte nos bolsos das pessoas certas, principalmente, porque o velho prometera dar nomes às alamedas, o que transformaria determinadas pessoas, ou as pessoas certas, em celebridades.
         O velho Boaventura resolveu propor ao Poder Público, que ele poderia fazer a modernização do tal jardim, com novas plantas e alamedas e um muro para que vândalos não destruíssem as flores que iriam adorná-lo. O velho Boaventura gostava de rosas, de todas as cores e tamanhos e que bem não lhe faria poder olhar da janela do seu quarto um mar de rosas, e não mais um bando de Zé Manés, de dorso descoberto e brilhantes de suor ao sol, acompanhados de suas famílias numerosas e barulhentas?
        Diante de um argumento tão importante além de outros merecimentos que o Poder Público honrou receber, finalmente, o jardim foi fechado para obras e a construção de um muro, prometendo entregá-lo à população, já que se tratava de um bem público, foi iniciado.
         Quando, finalmente, ficou pronto, o jardim estava cercado e dentro dele não havia mais locais para peladas de futebol, e nem mesmo locais para tocar músicas, que perturbavam a quietude das rosas, tão desejadas pelo velho Boaventura. Foi construída uma pista onde os cavalos da família Boaventura se exibiam, além de um jogo estranho onde através de uma rede, rapazes e moças, devidamente uniformizados, jogavam um ping-pong imenso, no entender dos Zé Manés, ignorantes, para os Boaventura, e os frequentadores do jardim passaram a observá-los, sem nada entender, aplaudindo quando ouviam aplausos e permaneciam em silêncio quando o silêncio imperava.
         Os desejos da família Boaventura passaram a ser os desejos dos Zé Manés, e alguns até resolveram apoiar aquilo, imaginando que poderiam um dia, talvez, cavalgar nos mesmos cavalos e aprender aquela arte tão difícil e usar aqueles uniformes brancos e uma raquete toda furada, a bater em uma bola.
          Aproveitando o muro que circundava o jardim, a família Boaventura colocava as notícias sobre a conservação do jardim, que, a essa altura, já não se sabia se era público ou apenas uma extensão do quintal da família, e, por isso, os Boaventura decidiram os horários de entrada e saída para os frequentadores.
        Passado algum tempo, os Zé Manés que passavam ao lado do jardim já não sabiam se poderiam frequentá-lo, apesar de estar sendo alardeado que aquilo era um bem de todos, apesar de que o perfil dos frequentadores houvesse mudado, e grandes festas que eram dadas no lugar já não pareciam com aquelas que os Zé Manés faziam.
        Das grades do portão, já com o brasão dos Boaventura, após a morte do patriarca, uma justa homenagem ao benfeitor que gostava tanto de rosas, e havia modernizado aquela coisa tão bagunçada, elas, as rosas, podiam ser admiradas, porém jamais tocadas por mãos que nada entendiam de cores e de rosas.
        A morte do patriarca trouxe um grande problema, porque os descendentes não eram tão brilhantes, mas, pelo contrário, eram um pouco desastrosos, e, aos poucos, foram perdendo seus poderes, até que, finalmente, o jardim voltou a ser liberado, tendo em vista que outras famílias, também de estirpe, desejavam participar dele.
      Dessa luta, os Zé Manés conseguiram, por um acordo entre as classes, poder também participar da administração do jardim, e, qual não foi a surpresa, que as rosas passaram a ter uma cor mais intensa, nas mãos dos Zé Manés, que agora trabalhavam nos seus cuidados, e algumas outras flores começaram a ser introduzidas, como os cravos, que vicejavam pontudos e corajosos, competindo com as rosas que eram tão cultuadas pelos Boaventura.
        Isso desagradou, severamente, os Boaventura, que detestavam cravos, não se sabe pela memória do velho, ou por teimosia, mas, a esta altura, os Zé Manés já cuidavam da terra, aprenderam a cortar a grama, e alguns já arriscavam a pular as barreiras com os cavalos, o que deixou estupefatos os Boaventura que jamais poderiam imaginar aquele bando de Zé Manés aprendendo a arte da equitação, e que o tênis deixou de ser um calçado e passou a ser um esporte.
        Em represália, os Boaventura, ainda donos do muro que circundava o jardim, começaram a colocar mensagens insinuando que os Zé Manés estavam poluindo o ambiente, e que sem a educação devida não saberiam conservá-lo, e aventaram a hipótese do Poder Público vender o jardim para alguém no estrangeiro, com certeza com mais expertise do que a população zé mané existente, e administradores e conhecedores de plantas que poderiam trazer outras rosas de outros países, tornando o jardim, que fora chamado de Jardim dos Zé Manés, assim, pelo acordo entre as classes, internacional.
         Com muita raiva os Zé Manés não concordaram com a internacionalização daquele lugar, já que ele pertencia à população e não era propriedade de uma família que achava que poderia fazer o que bem entendesse.
      Os Boaventura esperavam que, sob o domínio internacional, e com uma linguagem estranha que só eles entendiam, um perfeito acordo poderia por fim àquela corrida de Zé Manés achando que eram os únicos donos do lugar.
        O muro ficou pilhado de notícias onde diziam que a incapacidade dos Zé Manés em administrar era notória, já que confundiam um jardim, onde somente deveria imperar rosas, as outras flores não davam um bom efeito. E não adiantava os Zé Manés contestarem tudo aquilo porque, afinal, diziam os Boaventura, o muro era deles, e eles poderiam colocar as notícias que quisessem. E nada adiantava os Zé Manés reclamarem que o muro fora uma concessão que o Poder Público dera, e que eles não tinham o direito de espalhar mentiras sobre eles.
        A situação ficou insustentável, e os Boaventura, com a aquiescência do Poder Público, devidamente convencido por eles, finalmente fecharam o jardim e retiraram todos os cravos.
        A partir dali, o jardim ficou conhecido como o Ex-Jardim dos Zé Manés. Enquanto os Boaventura retiraram todos os cravos e plantas estranhas, os novos administradores estrangeiros o mantiveram fechado só permitindo a entrada dos Boaventura e das pessoas de bem que os acompanhavam.
         Os Zés Manés passaram a circular, próximos ao jardim, e a reclamar e se lamentar do muro e das notícias que eram colocadas nele. Por entre as frestas nos muros que faziam escondidos eles podiam perceber que alguns cravos ainda permaneciam teimosos, sempre prontos a florescer, aguardando que finalmente seus reais donos voltassem a cuidar deles, e as sementes de outras plantas eram atiradas por cima dos muros, na esperança de que o jardim não se sustentasse.
          Um Zé Mané, um dia, parou diante do muro, coberto de notícias e disse para as pessoas.
          – Gente! É apenas um muro!

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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