Contos

O beijo roubado

        Respirou profundamente depois que a porta se fechou. Respirou mais ainda, latejando o peito sobre a bancada da pia quando a porta se fechou mais uma vez. Quando todos saíram, finalmente, estava só em casa e se guardou. O seu peito arfava e via o colo num ir e vir cadenciado, olhando ora as mãos esbranquiçadas de sabão, ora somente ouvindo a água gotejar na pia cheia de louças sujas. O silêncio dominava o ambiente e somente o pingar cadenciado da bica teimoso sobre os pratos, ainda com os restos do café da manhã, pequenas migalhas de pão, restos de queijo, à espera da vez na limpeza, insistia em existir. Aquele era o seu refúgio, o seu melhor lugar. Dali podia olhar pela janela e ver o balançar das árvores, o caminhar eterno do vento, e o fundo musical impiedoso das gotas caindo na água suja.
        Carmen abandonou as louças e retirou um pedaço de carne da geladeira, começando a dissolvê-la em pequenos pedaços, preparando o almoço. Os gestos mecânicos colocavam os pedaços de lado como se a memória pudesse ser deslocada, aberta e exposta. E dessa memória pudesse arrancar a explicação que fazia aquela janela lembrar, como um filme, a vidraça temporal, e poder saltar e caminhar para explicar a si mesma, por que o sorriso da pequena era tão presente.
      Concatenava o leve vaivém da faca com o tique-taque do relógio na parede. Não sabia o que pensar. Nunca concluía sobre o que sua vida representava para ela mesma. Ao olhar pela janela via a pequena usando o balanço, indo e vindo em sua direção, e, na sua boca de criança, a seriedade de quem contava com precisão as idas e vindas do brinquedo. Era quando Carmen sorria para o nada, imaginando o quão seria para ela poder contar com precisão as vezes em que passava arrastando os pés no ir e vir da casa. O sorriso da criança parecia querer trazer para ela um motivo para um sorriso, para uma alegria. Querer contar o seu segredo, o segredo que escondia e, ao mesmo tempo, a trazia para um momento de ternura e paz, daquela menina perdida no tempo.
        A imagem que guardava na lembrança representava o retorno ao seu local de refúgio. Era naquele momento que encontrava a felicidade, o leve conforto na ida ao tempo passado. Chegava a sorrir para a pequena e ela finalmente lhe devolvia o sorriso.
        A pequena no balanço esperava a chegada do grande amante, aquele que a tiraria do eterno balançar para ser a estrela cintilante. Ela começou o sonho e Carmen continuava a sonhar mais adiante, quando a sua memória se revolvia atrás daquela pequena aparecendo e desaparecendo na sua janela.
        Carmen continuava a olhar e ela via a pequena ainda sorrindo. Carmen sorria por dentro, envergonhada de olhar o tempo que passou e não voltava, mas ela continuava a pulsar a ida e a vinda da memória. O que aquela pequena tinha dentro de si, que chegava à janela do tempo para explicar para Carmen o motivo do sorriso que guardava? E somente ela o sabia. E o motivo tão forte de aquela lembrança abraçar um vazio, e que este vazio guardava o segredo que, naquele momento, o tempo trazia, consolando os instantes de tristeza de Carmen no presente.
        Atrás dela, a casa permanecia em silêncio, com o fundo tiquetaqueando intermitente, organizando o caos de seus pensamentos. O tempo seguiu o seu curso, oscilante. Dentro de Carmen a tentativa de pará-lo e relembrar o que ficou preso no passado que lhe trazia um momento de encontro com a paz.
        A pequena deveria vir ao seu encontro. Mas a criança não deixava o balanço no eterno ir e vir, pendulando no ritmo, na cadência do vento que levava o banco para longe e para perto da sua janela. Ela, a pequena, por sua vez, tentava eternizar, guardar no para sempre aquilo que motivou o seu sorriso, e o esquecimento de Carmen teimava em esconder, em não explicar. Que instante mágico ficou petrificado no tempo, e que a memória da pequena no ir e vir do brinquedo trazia?
      Qual era a distância no tempo entre o balanço, a liberdade de poder caminhar sobre o solo, como o voo permissível, e a vida enclausurada pela janela, pelos afazeres, pelas obrigações, pela ternura que emprestava aos filhos e ao marido? Todos burocráticos ao sair para a escola, para o trabalho, certos de que encontrariam Carmen guardada dentro da casa onde a deixaram pela manhã.
         – Por que a imagem recorrente da pequena no balanço lhe recordava o refúgio no tempo?
         – Por que recorria ao ir e vir do balanço para relembrar, para reorganizar o caos de seus pensamentos?
        – Por que teimava em olhar através daquela janela, como se tentasse descobrir na paisagem a explicação de seu vazio, do que não conseguia explicar? Como se deixasse nela o fato perdido e, ao mesmo tempo, o conforto. E, na sua imaginação, a pequena aparecia e desaparecia.
        Tudo isso, Carmen pensava. Havia os porquês. Mas nunca havia o porquê esclarecedor que interrompesse a cadência do balanço que seguia na imagem perdida no tempo.
          Na esteira da eternidade passada, Carmen sabia por que aquele instante, aquela imagem constante, passeava na memória. A pequena sorria e o seu vestido vermelho, diáfano, saboreava o vento que provocava seu ir e vir ritmado.
         A pequena olhava a janela onde Carmen se escondia. Da janela, Carmen sabia o motivo do sorriso da pequena. O corpo de Carmen balançava na lateral da pia, como uma dança sutil e solitária, em seu balanço imaginário.
        As duas sempre se encontravam quando a tristeza abatia Carmen, e o silêncio da casa se tornava absoluto, com o tique-taque intermitente habitando o vazio atrás dela, guardando o valor das coisas que duram, que se eternizam. No eterno, Carmen imaginava o belo se expandindo, mas, ao mesmo tempo, sendo inesquecível, e sendo inexplicável, como a própria poesia que se perde no tempo e vem à memória em pedaços, disforme.
        A pequena paralisou o banco do brinquedo e a memória furtiva iluminou o rosto de Carmen. Um beijo finalmente foi roubado. Chegara furtivo, paralisando o movimento, o pulsar do brinquedo, paralisando o vento, paralisando o tempo, paralisando a saia vermelha. Carmen sentiu novamente o calafrio de lábios medrosos e molhados, enviados por um rosto angelical.
        – Mário! – agitou-se ela.
       O leve brotoejamento da pele, o carmim dominante nas bochechas. A pequena correu para a janela de Carmen, guardando o sorriso da surpresa, correu para a janela da cozinha, vazia e abandonada, a carne em suspenso, deixando o tique-taque imobilizado e esquecido.
        Carmen correu para o espaço vazio do jardim, sentou-se na grama, imaginando com o vento no rosto, o balanço agora ausente, sentindo o pulsar do coração apressado, tentando encontrar novamente no presente, o mesmo beijo que ficou eternizado, e ficara esquecido no passado.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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