Opiniões

Esse mal-estar que não se acaba

        Simbolicamente representado no mito de Adão e Eva, quando o arcanjo Gabriel mostra para Adão, nas portas do paraíso de onde era despedido, o novo mundo do qual iria participar, a máquina do mundo começou a se mover. A partir daí, ancorado na existência do paraíso, o homem tenta retornar até ele, através das teorias que elabora, das utopias de que se alimenta, e da esperança representada na vinda da justiça pelo Ser divino que, como um super-herói, virá em socorro da humanidade, estabelecendo a punição dos injustos e dando aos justos, crentes nas suas determinações de que, pobres de espírito, a eles será dado o retorno.
      A isso, a esse obstáculo que bloqueia a ida da humanidade ao paraíso, estabelecemos como um mal-estar, este mal-estar que nos obriga a conviver com as prepotências, com as ditaduras de pensamento e de comportamento.
     Até o século XX, a modernidade tinha a sua esperança pautada no sucesso das máquinas, solucionadoras dos problemas sociais, na utopia do pensamento único não capitalista, ainda determinado pela época das Luzes, com seu raciocínio de logicidade, esgarçado até que a exploração pelo outro se elevou a um grau amplo de magnitude, e o mal- estar, quando preconizando a ida ao paraíso via tecnologia e à sociedade igualitária, a humanidade se viu diante do inevitável: a sociedade igualitária não era possível. Até porque esse padrão de comportamento social levava em consideração o que cada grupo, de países ou pessoas, considerava como o ideal.
        Diante da pós-modernidade, o mundo se viu na globalização com as diversidades de culturas, que não aceitaram o padrão único de pensamento, mesmo com benesses sociais, mas destruidoras de comportamentos culturais milenares, e na tentativa de imposição de modelos, levando a guerras, e, no seu ápice, à guerra do terrorismo, sendo esta uma visão lateral do lado que tenta impor ideologias, e do lado que resiste na sua como forma de viver.
      Mas, algo, além disso, apareceu. Imaginemos o mundo sem as redes sociais, com a movimentação de pessoas vistas através das mídias, festejando nos eventos, ou mesmo nas igrejas lotadas, estatísticas de violência controladas nas informações. Esse era o mundo de antes, o mundo das possibilidades, onde as diferenças existiam e eram escondidas nas informações e contrainformações. A construção do futuro estava baseada no falso.
        A sensação que se tem, hoje, é de um estado depressivo socialmente. Olhemos o Brasil: crescimento no consumo de antidepressivos no país cresce ano a ano, as mortes por depressão deram um salto impressionante. E por que o estado depressivo aumentou?
        Agora, voltemos para as redes sociais. Cada indivíduo, com acesso à internet, e às redes sociais, pode manifestar o seu pensamento. Antes, circunscrito a ambientes íntimos, em reuniões de membros, o pensamento ganha asas e consegue se multiplicar, agregar companhias, organizar-se.
     Descobrimos, então, que a sombra da escuridão que paira em algumas consciências sobre o que fazer com o semelhante que aparece como o intruso, nas palavras de Bauman, que não se entrega ao pensamento único, que, muitas vezes, é dono de um discurso conciliador, de visão não conflitante, mas da integração do outro, é achincalhado, acusado de adjetivos de classificações aos quais não pertence, e que tenta compreender o momento social, é a sua pura e simples eliminação.
     Ao se entregar ao discurso das soluções radicais na resolução dos problemas sociais, nos vemos diante da eliminação do oposto, seja ele ideológico ou social. O social representado na pregação da pena de morte, ou na morte lenta da maioridade penal, ou na pauta do discurso religioso, disseminando o medo, o desrespeito da livre determinação do outro em decidir o que fazer com o próprio corpo.
        A inclusão social, por outro lado, é vista não como solução dos problemas sociais, no respeito nas diferenças de pensamento, de comportamento, mas, como uma confrontação. Porque a inclusão social pressupõe aceitar o outro como ele é, e não como um ser, ao ser incluído, a ser aceito, mas a ser domesticado e comportado diante de um pensamento, supostamente, hegemônico e como única alternativa para a convivência.
        O mal-estar pós-moderno é a sensação de descobrir que, por trás da suposta cordialidade do brasileiro, existe uma camada de pessoas que prega simplesmente a raiva e o ódio para o pensamento divergente. E essa pregação, multiplicada, assusta e nos faz temer o que poderá acontecer na convivência com esse diferente tão convicto e agarrado ao egoísmo e à prepotência de dizer: se eu consegui por que o outro não consegue? Talvez feliz por ter escapado da miséria por uma simples questão de sorte.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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