Premiados

Encontro na noite

Primeiro prêmio em Contos XXIX Concurso Paulo Leminski 2018

     Ainda me lembro da fumaça enrolando da ponta do cigarro subindo enovelada. Minha mãe reclamava que ela era responsável pelo amarelão do teto. Que nada! A umidade que passava do telhado que não tinha conserto era a responsável, dizia ele. Quando ele morreu, ela olhava para o teto amarelado e ficava pensativa.
        Nessa hora, encolhido nesse canto de rua, fico imaginando o pensamento dele enquanto enovelava o cigarro, que como uma pira exalava um perfume enjoativo, e o cigarro queimava na sua mão, essa sim amarelada pelo fumo. E o pensamento dela, perdido a olhar para o céu de gesso, amarelo como um pôr do sol que nunca terminava.
        A chuva teimava em continuar enquanto eu me encolhia no canto de rua, vendo o cigarro consumir nas mãos, e apertava com impaciência a cinta rechonchuda, sentindo a coronha da arma, como se verificasse as horas intermináveis que não passavam.
      Nunca me imaginei ali parado para um acerto de contas, mas estava, sim, parado, vendo a chuva respingar no cimento e molhar com insistência a barra da calça. A rua estreita, com casas somente, tinha uma pequena elevação rumo à favela, localizada a centenas de metros adiante. A chuva forte afugentara a população e algumas casas iluminadas, com o acender e apagar azulado, denunciavam as televisões ligadas.
       O que a minha mãe estaria assistindo agora? Nada. Nunca mais ligara a televisão e ficava entretida com um crochê interminável, medindo uma camisa dele, como se fosse uma encomenda sem urgência.
Certa vez ele quis aprender xadrez. Resolvi ensinar. Ele ficava com ciúme vendo os outros jogando nas praças.
        – Para que jogar xadrez na praça?
        – As meninas olham – dizia ele.
    – E você acha que olham para vocês? Devem pensar no bando de desocupados a ocupar desnecessariamente os bancos, como se tivessem sido feitos só para vocês.
      – Brincadeira, continuava ele, me disseram que esse jogo é coisa de gente inteligente. Quero ser também.
        Eu ensinei. Ele nunca aprendeu. Teimava jogar como se fosse jogo de damas.
        – Cavalo não salta? Então é dama.
        – Não, não é dama.
       Falávamos de futebol. Ele Vasco, eu Flamengo. Nunca dava certo. Brigávamos. Brigávamos sempre. Hoje estou aqui, por causa dele, à espera…
        Quando saía da janela, depois de acender o terceiro cigarro, eram quatro horas da tarde, hora do jogo. Arrumava a mesa, colocava a garrafa térmica de café bem forte e sorvia vagarosamente a caneca, arrumando expressões no rosto em cada lance do jogo. Eu ficava na sala ao lado, lendo um livro, vendo a televisão e torcendo contra ele, silenciosamente. Quando ganhava entrava na sala com um sorriso triunfante, eu me guardava. Quando perdia, vibrava com alguma atitude antidesportiva e incentivava, depois de um gole de café, alguma pancada que seu jogador dava no adversário.
        Aquilo me indignava. Como podia vibrar com isso? Naquela hora, ele era um herói maculado. Um Odisseu sem rumo na sua nau vascaína, agarrado no mastro, como se fosse o único goleiro que poderia impedir um gol.
      Já passava da meia-noite e a espera não acabava. A chuva parou, mas a barra da calça seguia molhada, e eu sentindo o pingar dela para o chão. Estava imóvel. Um rato saiu do bueiro e olhando para os lados, sua sombra projetava na calçada, contra a direção da luz que vinha de uma lâmpada no poste, que teimava em sinalizar um tempo final de vida. Piscava. A sombra do rato também. Ele, imóvel, a sua sombra aparecendo e desaparecendo dava-lhe sinais de vida. Ameaçou arrancar na minha direção. Senti um frêmito. Encrespei o rosto e atirei o cigarro na direção dele. Foi certeiro. O bicho se assustou com a brasa cintilando na sua frente. Seus olhos pareciam abrir. Seu tamanho cresceu para mim. Ele olhou com os bigodes no ar e numa fração de tempo atirou-se de volta ao bueiro.
        Não sorri, não chorei, não senti medo. Apertei a coronha na minha cintura e olhei a barra da calça molhada, teimosa grudando na minha perna.
      Odiava aquele cigarro. Me encarregava de buscá-los. Não gostava. Ele insistia. Minha mãe reclamava. Ele insistia. Eu buscava. Fumo agora. Mas ninguém o traz para mim. Fico com ele. Observo a fumaça enovelar diante de mim. Não quero ser a sua cópia. Mas não era justo que ele fosse embora assim. Simplesmente não era justo.
        Quando ando pela casa, abro a porta do armário da cozinha e olho lá no fundo a caneca que ele sorvia e torcia contra mim. Não me atrevia a tocá-la. Minha mãe lavou-a e nunca mais a tirou do fundo do armário. Era imune às outras, era imune à limpeza do pano decorado com babados que guarnecia a prateleira de copos. O meu preferido ficava na ponta, bem no lado esquerdo. Ficava imaginando o dia em que ele iria para o fundo do armário. Estava pronto para tudo.
       Soltei um suspiro profundo. A rua ficaria mais deserta e o trânsito de pessoas que era pequeno estaria reduzido a nada, e o momento em que ele passaria era próximo. Não sentia nenhum medo, também não tinha coragem. Somente não achava justo ele ter ido embora assim tão de repente. Minha mãe ficara com o olhar perdido no amarelão do teto. Eu me perdera com ela, quando ele foi embora. Não, não era um abandono, ele foi embora por essas coisas do destino. E, por causa disso, eu estava ali parado, depois de tanto tempo investigando, perguntando com cuidado, como se achava, onde morava, por onde caminhava. E a noite escura, com a lâmpada teimosa a emitir sinais gráficos, como o barco no meio do nada a emitir algum sinal de socorro, iluminava a ponta do outro cigarro que eu acendera.
        Quando apontava no final da rua, chegando em casa, podia ver no meio da noite a brasa do cigarro acesa. Ele terminara seu trabalho. Quantos sapatos fizera naquele dia? Quantos consertara? Quantas vezes, ele recebia do cliente e repassava para minha mãe. Ela dizia que, pelo menos, poderia comprar uma tinta para cobrir o amarelão do teto, já que ninguém se atrevia a consertar o buraco na telha. Ele dizia que era um desnível do telhado. Coisa que não dava para consertar. Fizeram a casa errado. Fizeram um erro no desnível do telhado. Ela teimava que era telha quebrada, ele dizia que não tinha jeito. Só se mudasse de casa. Ela dizia que era uma boa ideia, mas não iria com ele. Ele dizia que, tudo bem, poderia ir e ela que consertasse o telhado do jeito dela. E quando descobrisse o desnível se lembraria dele. Quando ele foi embora, ela ficou olhando o amarelão do teto.
        Nunca descobriu se era desnível ou telha quebrada, mas, com certeza, o amarelão do teto lembrava ele.
       A chuva voltou fininha, passava de uma hora da madrugada. Jogando xadrez na praça, os amigos dele diziam onde ficava, onde morava, mas ninguém conseguia explicar o motivo. Não havia motivo, o motivo foi fútil. Fez porque quis, o sujeito era assim. Malicioso, fingia o que não era. Queria aprender xadrez, mas não gostava de perder. Se perdesse matava, fazia e acontecia. Mas era apenas um jogo.
       Minha mãe queria saber que jogo era aquele e se ele ia apostar. Ele dizia que não. Ele piscava o olho para mim. Sempre piscava o olho para mim. Buscava uma cumplicidade, uma vontade de contar como era a sua vida, de reclamar da mulher, da mãe, das impertinências. Enquanto acendia outro cigarro e enovelava o ar. O cheiro enjoado, o ar na casa ficava insuportável, até que minha mãe escancarava a janela para o ar entrar e ele ia fumar no parapeito da janela. Um dia eu te largo, e ele dizia o mesmo, e complementava com um “mas, eu falo sério”. E piscava o olho. Até o dia em que foi embora.
       Foi embora de repente. E por isso eu estava ali, quando a lâmpada acabou de piscar e exalou seu último halo de luz. O rato não teria mais motivo para não sair, tudo era uma sombra onde podia se esconder.
       – Sabe como se pega um rato?
      Ele me disse uma vez, depois de insistentemente ficar esperando um rato sair da toca e eu de tocaia com a minha espingarda de chumbinho.
      – Você não tem que vigiá-lo, você tem que atrair ele para você, esperar, saber como ele se comporta.
     Em seguida, colocou um pedaço de queijo, de comida, para saber a hora exata que o rato saía. O bicho pôs o nariz para fora e rapidamente roubou a comida. Nem deu tempo de apertar o gatilho. Ele riu. Em seguida colocou a comida mais longe, e mais longe, e mais longe, até que o rato foi ganhando confiança e parou para comer antes de entrar no buraco. Ele deu um tapinha nas minhas costas e eu apertei o gatilho. Calmamente. Ele dizia que o rato era meu, era só matar. E eu matei o rato. Um frenesi subiu pelas minhas costas e eu podia sentir um certo brilho no olhar do velho.
       Investiguei muito tempo, me expus, subi morro, disfarcei de mendigo, fingi ser policial, amedrontei, tremi e finalmente encontrei. Fugidio como a fumaça do cigarro que se enovelava no ar. Começando espessa, em seguida ficando límpida, fugaz, se espalhando e se escondendo no ar.
        Desapareceu como fumaça, diziam os jogadores de xadrez. Ficou aqui três dias, desafiando.
        – Posso aprender em três dias, me ensina só alguns truques.
       Decorou cada um deles, poderia pegar um incauto, um bobo, coisa só para tirar um sarro, mostrar que era bom. Era bom no sapato, no sapateado, poderia ser bom naquilo, poderia ser bom no que tivesse vontade de ser. Eu ensinei, peguei alguns livros, mostrei, decorou. Ele achava os nomes engraçados: saída dos quatro cavalos; defesa índia do oeste. Minha mãe perguntava se era para apostar a dinheiro. Ele dizia que não, mas se ganhasse uma graninha, poderia comemorar assistindo ao jogo do Vasco no Maracanã.
         Piscava o olho. Zombava. Dizia que tinha sorte.
       Eu dera sorte. Achei a amante, a bruaca que encobria, que lhe dava dinheiro. Um muquifo, onde morava, no meio de uma favela. Fingi ser alguém à procura de um aluguel barato. Não sentia nenhum temor em ser reconhecido. Nem me importava. Estava para o que desse e viesse. Apertei a coronha do 38 na cintura. Não me sentia seguro, apenas tinha uma vontade. Uma vontade de fazer aquilo desde o dia em que ele foi embora e deixou minha mãe olhando o amarelão do teto, à procura de um sol que nunca terminava o dia.
        Eu o vi chegar, era um pouco diferente, mas o jeito de andar era igual. Um pouco mais velho que imaginava. Levantava da mesa de xadrez jogando a perna esquerda bem longe, fingindo ser capoeirista, diziam. Mas era, não era, o que importava.
       Vasculhei seus caminhos, decorei seus horários, não fizera mais nada depois que ele foi embora, levando seu cigarro de fumaça enovelada e deixando o amarelão no teto para minha mãe lembrar dele.
       Já se passaram dois meses depois dele. Fiquei postado muitas vezes naquele lugar, a subida da ladeira onde estava o muquifo que ele morava com a amante. Não tinha cigarro nas mãos, nunca vira, e, com certeza, não tinha um amarelão no teto para a amante lembrar dele.
        Depois de minha mãe insistir bastante, o velho resolveu subir no telhado. Ficou lá, não descia. Eu fui bem devagar e fiquei observando ele, enovelando o cigarro contra o céu azul, olhava para diante, como quem singra com a nau por mares nunca dantes navegados. Era ele contra o azul do céu. O buraco na telha? Não iria consertá-lo, eu já sabia. Em que ele estava pensando? Em um lugar bem longe. O amarelão continuou. Ele disse que era desnível do telhado, não tinha conserto. Lá em cima ele olhava o horizonte com os olhos semicerrados da quentura da fumaça do cigarro.
       Quando meus olhos ameaçaram fechar no sono e na espera, ele apontou no início da rua, sua sombra se projetava depois dele, de encontro com a luz dos outros postes, contra a cumplicidade do meu. Ela, a sombra, se movimentava para trás e para frente, à medida que avançava na direção de cada poste de luz. O meu, aquele que ficava bem atrás, a lâmpada soltou o último halo, e a escuridão, o bueiro, o rato que se encolhera, estavam silenciosos. Podia ouvir o barulho dos pés e uma cantoria baixinha que sua boca exalava. Jogava o corpo para os lados como se ameaçasse um bailado, uma luta imaginária.
        Resolveram apostar, eles disseram. Os dois se postaram de frente. A plateia se aproximou. Os mais experientes se preparavam para ridicularizar, se cutucando a cada jogada mal feita. Mas os dois estavam levando o jogo a sério. Meu velho tinha decorado muito bem, cada uma das jogadas. Arrancava alguns gestos de aprovação e ele sorvia um trago do cigarro, satisfeito, jogando a fumaça para o ar, com força.
      O outro se irritara, quis desfazer o jogo. Não dava. Como não dava? Eu faço o que eu quero, e jogando a perna esquerda para o lado num gesto de capoeira, sacou a arma e descarregou três tiros no meu velho.
       Quando olhava para o caixão lembrava da fumaça enovelada que ele levou embora e o amarelão que ele deixara no teto para minha mãe lembrar dele.
        Sai silenciosamente da ruela escura, e o outro com um olhar de surpresa, encoberto pela escuridão, tombou com três tiros no peito, meio de lado, com a perna esquerda jogada, na tentativa de uma última jogada de capoeira.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

Um comentário sobre “Encontro na noite

  • Cara, muito incrível! Achei fantástico o jeito como a figura do pai e a figura do assassino meio que se misturam na cabeça desse narrador. No começo pensei que a forma de narrar era meio desconjuntada, mas depois que entendi porque era assim, não consegui desgrudar o olho até terminar de ler. Você mereceu mesmo ganhar o concurso! Parabéns!

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