Crônicas

Dom

        Todos nós temos um. Alguns conseguem melhorar, outros piorar. Alguns têm o dom que merecem e outros não. Dom, talento para alguma coisa são como um regalo, um presente que recebemos quando nascemos. Alguns têm tempo para desenvolver, outros não, exatamente, não por não querer, mas porque esse dom não permite que sobrevivam no mundo das utilidades.
        Essa utilidade tem a ver com o capitalismo: é útil aquilo que permite ganhar dinheiro. E muitos que têm muitos talentos, são talentos que não são permitidos, embora prazerosos (imagine, você sair de casa todos os dias para fazer o que gosta?), e loucos são aqueles que querem exercer seus talentos, apesar de a vida tentar impor outros termos.
        Na televisão ou no Youtube, não sei bem, durante uma das passeatas por volta de 2014, foi flagrada uma conversa entre uma mulher e sua filha e dois jovens discutindo sobre profissões. Discutiam sobre o que eles estudavam, alguma coisa da área de Humanas, e a mulher respondendo, a partir da pergunta de um deles caso a filha dela quisesse fazer uma área como a deles. A mulher respondeu que a filha fazia engenharia, uma coisa útil.
       Me veio a pergunta, de que se algum deles fizesse área de dramaturgia, formação de ator, possivelmente, a mulher diria que seria uma coisa, também, inútil. Portanto, essas pessoas que se deleitam indo ao cinema ou teatro gastam, inutilmente, seu dinheiro?
        Hoje, o grande talento é saber ganhar dinheiro. Por isso tantas pessoas, inclusive famosas, estão embarcando na onda de ganhos fáceis. Portanto, o grande talento, o grande valor, a expertise de influencers, divulgadores de formas fáceis de ganhar dinheiro têm como talento o embuste, a armadilha e a falcatrua.
        Assim como existe público que gasta seu dinheiro, alguns, para ver os talentos inúteis se exibindo em um palco, talentos que ali estão pelo simples prazer de fazer, corajosamente, o que gostam, existe esse mesmo público, cheio de convicções e espertezas, que acha ser esperto cair na lábia de pessoas, realmente, talentosas na arte de se portar como atores e enganá-las. Não é irônico?
       O talento, o dom tem o dom, eis uma redundância, de fazer crescer dentro de nós mesmos uma vontade enorme de abrir o pacote de presentes que recebemos e desenvolvê-los para o nosso prazer.
        Às vezes não aceitamos o talento que recebemos, não temos interesse porque o julgamos inútil, dentro da ótica de que não ganhamos dinheiro com ele. Nos tornamos inúteis para nós mesmos, e, por certo, útil para alguém. Sucumbimos diante do talento de um desconhecido, sucumbimos diante de alguém que tem o talento de se mostrar melhor. Muitos têm o talento de se tornar a fantasia, modelo para alguém, e usar esse talento para desmerecer os nossos.
       É claro que aquilo que vou dizer parece impossível. A verdadeira revolução é limitar nossos anseios de riqueza, considerando a riqueza como o excesso de tudo. Garantir um mínimo para o futuro, para poder achar tempo de explorar os nossos talentos, e, quem sabe, ganhar dinheiro com ele, mostrando que o verdadeiro talento não é imitar ou tentar possuir o que o outro, supostamente, tem, mas mostrar que não precisamos dos espertos para viver.

Fonte da foto: Photo by Kira auf der Heide on Unsplash 

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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