Crônicas

Desmilinguir

      Eu tenho um certo carinho pela palavra. Ela tem a sonorização da própria coisa se desfazendo. Parece que nós podemos imaginar o objeto, a pessoa, o personagem se desfazendo diante de nós.
        Me sinto desmilinguir todas as vezes que vejo nas redes sociais os raciocínios absurdos, ditos por pessoas que ostentam cargos e títulos, eivados de lauréis. Fico imaginando o que está acontecendo com o conhecimento. Um suposto conhecimento posto a serviço de coisas indefensáveis. Penso que os títulos foram conseguidos não porque o suposto estudioso estivesse em busca do conhecimento, mas em busca por títulos e colocá-los a serviço da estupidez.
        Me sinto desmilinguir quando a religião é posta a serviço desse mesmo procedimento, mesmo não sendo religioso, e já expliquei isso em algum lugar, respeito a religião e quem necessita dela para prover seu espírito de força. Minha relação com o Altíssimo não desmilingua porque não recorro à religião. Mas, quando vejo a religião posta a serviço da desinformação, vejo-a ser desmilinguida pelo seu uso indevido, invertendo tudo aquilo que uma religião deveria fornecer: a segurança espiritual e o conforto tão necessários em momentos difíceis da vida.
       Me sinto desmilinguir se não tento confrontar o desconhecimento. Porém é uma tarefa impossível ir às redes tentando convencer aqueles que não querem ser convencidos, mas rindo vendo o mundo à volta se desmilinguir, e rir disso, embora nervoso. Fico pensando que a humanidade, em sua maioria, ou, pelo menos, a maioria barulhenta, vibra com esse desconforto, e esse desmanchar dos nossos espíritos.
       O conhecimento é perverso. Ele desvenda a realidade e nos assusta. Entender a realidade é um sofrimento. Mas esse sofrimento desperta o desejo de sobrevivência. Ao entrar em contato com o sofrimento, nos sentimos desmilinguir porque tentamos entender a realidade. Mas é, justamente, onde vamos encontrar forças para resistir, e não deixar desmanchar ou desmilinguir nossas esperanças.
        Mais do que nunca devemos resistir, a despeito do sofrimento de ver aqueles que negam a realidade, e o seu impacto sobre nossas existências.
      Tentando manter a serenidade diante dos acontecimentos, longe de nos desmilinguirmos, estaremos enfrentando, com coragem, as adversidades. Há um sentido muito claro quando a ignorância tenta assumir o controle da situação. O ignorante é covarde e finge estabelecer uma lutar, porque busca a confusão e o desconcerto, porque é preguiçoso na busca do conhecimento.
       Não desmilinguir é um ato de resistência, que devemos perdurar. Não desmilinguir a nós mesmos é a melhor forma de demonstrar que somos fortes.
      Sabemos que, na verdade, a ignorância não resistirá por muito tempo. Ela vai se desmilinguir com o tempo, para mais ou para menos, e o importante é permanecer resistindo, tentando não se desmilinguir por dentro.

Fonte da foto: Photo by Maria Zavate on Unsplash 

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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