Amar em tempos revoltos
Poderia dizer em tempos de cólera, mas, não pretendo roubar o título aproximado ou tema de Gabriel Garcia Marques. Até porque as razões da cólera, hoje, não estão subordinadas a um triângulo amoroso, mas a uma coletividade que clama por justiça, cada um a seu modo, o que transforma o ato de arbitrar em justiçamentos para uns e alegria para outros. Vivemos tempos de perguntas com a nova realidade.
Talvez um Romeu e Julieta modernos em que dois amantes são separados não por pais preocupados em não misturar linhagens, por preconceito e orgulho, mas, amantes separados por ideologias.
Será possível amar alguém que pensa diferente de nós, nesse mundo turbulento? O Brasil se descobre dividido, amigos de longa data se estranham, e como é possível, perguntamos, que aquele que julgamos conhecer, nesses momentos se revela um outro ser, com pensamentos diversos.
Beijar o outro que pensa diferente, que se revela uma outra forma de pensar. Será possível amar alguém diferente no pensamento? Como dialogar com aquele que discordamos? Será possível dividir vida e espaço físico, filhos, com partidos e ideologias se entranhando no meio de dois?
Amigos se afastam e são encontrados de tempos em tempos, com conversas pouco duráveis, divergências, e no final das contas cada qual vai para o seu lado. Mas, e o dia a dia? Compartilhamentos de assuntos espinhosos nas redes sociais. A aproximação diária na leitura dos posts, a distância física que não permite um falar mais alto, uma certa imposição do ideário. E qual a surpresa em ver amigos e companheiros de infância, universidade revelarem-se conservadores, apegados a religiões, ou vê-los empunhando bandeiras vermelhas em alegres selfies em passeatas?
E os amantes, viventes do dia a dia, cruzando olhares pelos cômodos das casas, dos lares, nas conversas com os filhos? Como amar em tempos tão difíceis? É possível deixar nas cômodas dos quartos, guardar ressentimentos e entrelaçar corpos e dizer palavras amorosas?
São pensamentos que se combinaram por pertencerem às mesmas gerações, ou não importando a idade, pensamentos comuns ou, pelo menos, próximos são suficientes para que o amor se deixe transparecer, desde que a cólera se ausente?
É possível esquecer os pensamentos diversos, se interessar pelo outro de outra forma, sob uma outra perspectiva? Como amar alguém que se confessa curtidor de determinada figura abjeta para um e digna de ser reverenciada por outro?
Somos um país buscando representatividade real para as ideologias que permaneciam na obscuridade, e amar em tempos de cólera, de aversão pelo pensamento do outro, é mais um exercício de extrema dificuldade. Quanto estaremos dispostos a esconder nossas ideologias para conquistar o outro? E conquistado, como manter nossos pensamentos reais escondidos para que o amor permaneça?
O amor resistirá ou se subordinará à cólera do outro até que a raiva os separe? Poderíamos seguir o sinal dos tempos de cólera: amar sem seguir o outro.
FONTE DA FOTO: MORGUEFILE.COM
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