Contos

Nuvem passageira

NUVEM PASSAGEIRA

            A notícia não poderia ser pior, a poucas horas do desfile. Carros arrumados, passistas, e no momento quase próximo da apoteótica apresentação, a fantasia de Metaracanga, com a sua coroa finamente decorada, estava destruída.
            Dona Flor encomendara o enredo – sugestão das entidades. Com ele, finalmente a escola atingiria o tão sonhado grupo das elites. Metaracanga era o personagem principal, o nome que os índios Tamoios atribuíam à Pedra da Gávea.
            A comunidade estava constrangida com a tragédia. Bento, o responsável pela guarda, aquele que teria a honra de vestir a fantasia, espancara sua ex, Carminha, e agora, levado pela polícia, caminhava pelas ruas, algemado. As notícias nos jornais já se preparavam para entintar as manchetes – Tragédia no Carnaval. No ato de rebeldia e frustração, Carminha rasgara e queimara a tão sonhada fantasia.
            Dona Flor chegou a sua janela e vislumbrou a tão famosa pedra que ornava o alto do maciço. A lenda de um índio que assassinara uma índia e que fora condenado por Nhanderu a ficar eternamente vigiando a baía da Guanabara e somente deixaria seu lugar escondido em uma nuvem.
            O destaque do carnaval da escola já não existia mais. Dona Flor se sentia responsável. Restava à comunidade descer para a avenida e expor seu trabalho. Maldição era o assunto que rolava entre todos.
            Ela se retirou para dentro do seu quarto, e não recebeu ninguém.
            A tarde começou a ser tomada por uma nuvem, diziam os meteorologistas: uma frente fria incomum para a época. Uma densa nuvem que tomava o maciço da Tijuca. As entradas de acesso aos cumes foram fechadas para evitar que os excursionistas e curiosos se perdessem. Uma chuva fina descia no alto, impedindo subidas.
            As luzes do carnaval começaram a acender e iluminar a Cidade Maravilhosa. Impedidas pela nuvem de se propagarem, a luminosidade das avenidas ficava mai intensa e desconcertante.
            Os integrantes da Escola de Samba Unidos pela Paz, girando em torno de 856 componentes se organizavam e, apesar da ausência e da tragédia, estavam dispostos a mostrar o melhor.
            Ao olharem para as arquibancadas, e o grande número de fotógrafos e jornalistas, números inesperados para a cobertura da escola, foram tomados de uma súbita euforia.
            O que faria uma agremiação que perdera um dos principais destaques, envolvido em uma tragédia tão próxima à lenda que tentavam interpretar?
            Dona Flor, quieta em seu canto, não quis atender aos apelos dos familiares, e nem tentou assistir pela televisão a inusitada apresentação de uma escola de samba de um subgrupo que nunca teve tal cobertura. Do seu quarto não se ouvia qualquer som.
            O céu totalmente encoberto pela densa nuvem, para alguns era sinal de chuva iminente, até pelo fato de o dia ter sido de calor intenso, para outros talvez a cobertura de uma cortina de teatro, que se abriria a qualquer momento, anunciando as luzes e os atores.
            Com o samba esquentando, o abre-alas alinhado, os carros alegóricos nas suas tomadas devidas, o último que carregaria Metaracanga e a sua coroa especial era cercado com certa melancolia, apesar dos apelos dos responsáveis pela evolução da escola.
            Canarinho, o puxador de samba, junto com seus companheiros, esquentava a comunidade com sambas antigos, e, finalmente, começou o samba-enredo da escola – Metaracanga, O Mistério da Pedra.
            Um burburinho tomava a área da concentração. O último carro entrara na pista, e nele, encastelado no topo, um Metaracanga vistoso como nenhum outro, empunhando uma coroa brilhante, espalhava em todos a vontade de mostrar com orgulho, um samba no pé. Como uma faísca, um rastilho inconsciente, cada um dos elos da imensa cadeia de música e harmonia encadeava na avenida um carnaval inesquecível.
            Ao passar o último carro, o povo nas arquibancadas olhava boquiaberto a figura majestosa e encoroada, cercada por lindas mulheres em roupas índias ínfimas, a rebolar um samba jamais visto.
            A Escola de Samba Unidos pela Paz terminou seu desfile com um sorriso estampado em cada rosto. A imprensa anunciava aos quatro ventos que aquele teria sido o melhor jogo de marketing que uma escola de samba tentara. O mistério sobre o desaparecimento da bela fantasia e da tragédia de seu componente não poderia ter sido mais bem engendrado.
            As tentativas de entrevistar o destaque Metaracanga foram infrutíferas, levado pelos seguranças da escola. Mas os seguranças juravam que não tinham feito isso! Mas que ele fora levado foi sim, confirmaram alguns. Outros diziam que teria sido levado pelas belas mulheres que o cercavam no carro alegórico. Ninguém notara também que a grande nuvem que encobria o céu tinha desaparecido. Da janela de seu pequeno quarto Dona Flor olhava Metaracanga.

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Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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