Contos

A sexta estátua

        É noite, noite eterna. Raramente alguém vem até o fundo do salão para passar as mãos na poeira, os dedos em riste na busca por um número perdido, ou então na busca de um título. O meu registro ficou embaralhado no meio de tantas arrumações e desarrumações constantes nas trocas de lugares, na busca da melhor posição; mas, onde eu estou, isso ficou no fundo do salão, esquecido.
        Nestas idas e vindas, o livro se perdeu, embora os cartões, onde eu possa ser achado, tenham continuado em ordem, em rigorosa ordem alfabética. A esperança fica por conta de algum desses dedos em riste que procuram um título inusitado, ou que estejam apenas andando pelo salão da biblioteca, e não me encontre; nunca me encontre.
        A escuridão é terrível, não existe a noção do tempo, creio mesmo que dizer anos seja pura figura de retórica, porque a noção de tempo se perdeu, fiquei perdido no meio de tantas mudanças, empoeirando na espera de que algum desafortunado nos descubra.
        A última coisa que lembro foi entrar em uma livraria, fugindo de uma pancada de chuva inesperada, e, junto ao balcão de saldos, começar a brincar com os livros em oferta. Quando a gente se entrega a esta procura sem razão de ser é bem possível encontrar algum título inusitado, curioso, um assunto desses largados por um escritor, a quem ninguém nunca deu importância: uma busca por raridades, curiosidades.
        Achei-o. E o meu polegar passou velozmente pelas páginas de um desses. O título? As Estátuas. Ao que parece, aquelas páginas já haviam sido passadas por várias mãos. Os sinais de outros polegares que as pegaram haviam deixado uma marca escura na borda das folhas, mas isso não queria dizer, necessariamente, lidas.
       Olhei, desoladamente, para a rua e a chuva que ainda persistia e algumas pessoas já começavam a se abrigar embaixo da marquise da loja, sem demonstrar nenhuma vontade de entrar, o que me fazia o único possível comprador.
         Folheava as páginas, procurando algum texto que chamasse a minha atenção, e foi quando uma figura, dentre as páginas, despertou a minha curiosidade. Imaginava, até então, tratar-se de algum romance. Mas a figura, dentre tantas palavras, aparecia em destaque. Uma mulher seminua, deitada em uma cama, e, como tantas, retratadas por pintores; não uma cama, mas um canapé. Seu rosto era expressivo, os cabelos pretos emolduravam o rosto e tinha olhos, e que olhos! Expressivos, hipnotizantes, instigantes.
        De resto a sala compunha-se de algumas cortinas e ao fundo quatro rostos colocados em pedestais, olhando para mim. Sim, olhando para mim, de uma forma assustadora, como se tentassem me avisar de algo. Mas, o meu olhar sempre voltava para os olhos da figura central da imagem: a mulher de cabelos negros, o corpo escultural, o lençol pudicamente jogado sobre seus íntimos, os seios, belos seios, à mostra.
       Não me dei conta, do tempo em que fiquei mirando aquela figura. A vendedora, impaciente, olhava para mim, à espera de uma decisão de compra. O dono da loja contabilizando ao fundo o faturamento daquele dia, de vez em quando olhava para as minhas mãos, tentando adivinhar quantos livros eu levaria, pronto a acrescentar a minha compra ao seu somatório.
       Não sei se a figura, o título, mas alguma coisa havia me encantado. Decidi, finalmente, comprá-lo. A vendedora retribuiu com um sorriso se não sei de alívio ou de satisfação, e, em contrapartida, o dono do estabelecimento finalmente pode contabilizar a minha compra e dar por encerrado o expediente naquele dia.
      Ouvi passos no fundo do salão, e me perguntei por que alguém teria chegado até o seu final. O livro balançou suavemente, foi retirado e colocado no lugar, fruto talvez de mais alguma arrumação. Os passos sumiram no fundo e as esperanças,… não, não as esperanças, mas um certo alívio tomou conta de nós.
        Não sei se a imobilidade traz um conforto final, tendo em vista que a prisão em si é um afastamento. Claro, deram por minha falta. O que fizeram depois? Fui procurado? Alguém chamou a polícia, percorreram os hospitais, as emergências, necrotérios, perguntaram aos amigos? Essa sensação de que finalmente caímos no esquecimento das pessoas, quando nossas coisas viram lembranças, nossos bens são divididos e finalmente jogados, doados…
        Isso! Somos agora o fruto de uma doação, quem sabe, uma biblioteca, perdido em um sótão de alguma casa. Não estamos mais à venda em algum balcão de saldos em uma livraria perdida na noite. Perdido para sempre em uma casa afastada, mantendo o perigo em segurança.
       Mas, realmente, o que eu queria, eu não sei se poderia falar em nome de meus companheiros, para o bem de todos era que aquelas páginas virassem um monte de cinzas. Porém, alguma força estranha, vinda daqueles olhos negros e cabelos em seu torno, perpetuava a existência. Um sentido de sobrevivência que vai além da nossa compreensão.
        Dizem que o desaparecer nos faz descobrir a verdade. Finalmente quando se vai, a verdade aparece. Existe algo além de nós? Fico ainda sem responder. É como um limbo, uma maldição. Até porque eu não morri, desapareci da existência.
        Quando saí da livraria, meus passos encontraram uma rua deserta, o que eu julguei pelo enorme tempo passado dentro do estabelecimento, e, como a chuva cessara, as pessoas já teriam ido para suas casas. Não me ocorreu, de maneira nenhuma, que o tempo seguiu seu curso. A rua estava movimentada quando lá me abriguei mais por causa da chuva do que propriamente na busca de alguma coisa para ler. Entrei assim, meio desconfortável, e confesso que adquiri o exemplar mais para fazer um agrado em troca do abrigo contra a água que caía do céu.
      Mas, a rua, na minha saída, estava estranhamente deserta e consultei a hora; passava das duas da manhã. Inacreditável!
        Na luz de um ponto de ônibus, distraidamente comecei a folhear o livro e sempre nele aparecia a tal imagem da mulher seminua, estendida no canapé e ao fundo as quatro estátuas a admirá-la por trás. Pensei eu, lascivamente: Que bela imagem elas não estariam tendo daquela visão de uma mulher em um corpo perfeito? Estiquei até o olhar tentando vê-la. Abandonei, rindo ironicamente, imaginando ser descoberto por algum colega de espera de ônibus a me surpreender tão desejosamente para uma mulher em uma imagem perdida em um livro perdido no balcão de saldos de uma livraria mais perdida em uma rua onde mal poderia ser notada.
      Olhando com mais atenção, reparei que no fundo da imagem havia uma janela. Nela, poderia reconhecer facilmente os prédios que eu via da minha própria janela. Era incrível a semelhança com a ponte sobre o rio, o supermercado ao longe, a pracinha onde tantas vezes ia passar as tardes, e em volta dela o passeio onde eu praticava corridas algumas manhãs.
       Surpreendentemente, parecia que a janela onde se retratara aquela mulher e as suas estátuas seria simplesmente a minha vizinha, ou melhor, a janela vizinha, ou possivelmente o meu apartamento teria sido usado como estúdio para aquela imagem, uma fotografia, uma pintura, sabe-se lá.
        Tentei relembrar se, por um acaso, algum pintor, retratista, enfim algum profissional de artes estivera vivendo como um vizinho meu.
         Chegando meu ônibus me dirigi para casa e entrei para o meu apartamento, sem antes não deixar de olhar para a porta contígua à minha.
       Pela manhã, movido pela curiosidade, perguntei ao porteiro do prédio se, por um acaso, algum pintor ou retratista, ou qualquer profissional assim parecido teria residido no meu apartamento ou no apartamento ao lado. Ele me respondeu que não. E que o apartamento ao meu lado estava desocupado há algum tempo. Perguntei pelos outros, que teriam a mesma visão da janela que o meu e ele me disse que estavam ocupados já há bastante tempo. E nenhum deles tinha um estúdio ou qualquer coisa parecida.
        Quando subi para a minha casa, novamente reparei na porta ao lado. No mesmo instante, da outra porta, um bando de garotos ruidosos saiu descendo pelas escadas, e pude ver que no interior do meu outro vizinho de porta, nada havia parecido com um estúdio.
         Sempre e sempre as lembranças me vêm à cabeça e tento montar o quebra-cabeça da minha chegada até aqui. Senti que alguém finalmente pegou o livro e o amontoava sobre outros. Uma breve claridade entrou finalmente no aposento e os nossos olhos quase cegaram com a luz. Não ela, a mulher, que permanecia impassível, no seu canapé, seu sorriso enigmático e os seus esplendorosamente negros cabelos e olhos.
        Não sei se pela curiosidade, não sei por que sentido, fiquei um longo tempo olhando no meu sofá a imagem da janela retratada e a imagem que eu tinha diante de mim. Incrível; a mesma janela, a mesma ponte sobre o rio, a pracinha e o supermercado.
       Decidi dar uma corrida e lá da pracinha podia ver a janela vizinha ao meu apartamento, com as cortinas recolhidas e, parando para prestar atenção, podia pressentir, prever alguns objetos brancos, logo depois.
        Isso é que foi demais. Poderia perguntar a algum dos meninos que corriam em volta, com olhos melhores do que o meu se eles conseguiam vislumbrar o que seriam aquelas imagens. Fiquei envergonhado, mesmo assim pedi, e um deles que atendeu ao meu pedido desculpou-se, mas não conseguia distinguir mais do que sombras além dela.
        Naquela tarde, tentei debruçar no parapeito da minha janela e ver o que acontecia no quarto ao lado. Estiquei um espelho e pude ver o que seriam estátuas, brancas, paradas logo depois da janela.
      Senti o livro subir para um par de mãos, e polegares passaram vivamente pelas páginas, a folheá-las sem nenhuma intenção de leitura; era uma questão de tempo até que a imagem finalmente paralisasse os dedos. Senti vontade de gritar, dizer alguma coisa. Era importante que tudo aquilo tivesse um fim. Não era justo que mais ninguém fosse arrastado até aquele inferno, apenas movido pela curiosidade infantil de todo ser humano.
       Saí da janela e me voltei para dentro do meu apartamento, meus olhos se fixaram no livro sobre a mesa, ainda aberto na página com a figura enigmática. Me enchi de coragem e me dirigi ao apartamento ao lado. Não sei por que razão coloquei minha chave, minha própria chave, na maçaneta, girei-a e a porta se abriu lentamente. Lá dentro tudo estava escuro. Segui pelo corredor e saí em uma pequena saleta, com um canapé e uma mulher seminua deitada coberta por um lençol. Ao fundo quatro rostos estavam sobre pedestais. Seus olhos me mostravam decepção. A mulher permanecia imóvel. Quando a curiosidade maior me levou para ficar atrás dela, o tempo parou, todo o corpo se endureceu. E meus olhos ficaram paralisados, olhando para aquela mulher.
        Um desânimo tomou conta do meu rosto, e somente era uma questão de tempo até, finalmente, um incauto levar o livro, notando alguma semelhança entre a paisagem da janela e algo que conhecia. Sabia que ao final das contas essa luz que se abria para nós não era nenhum sinal de esperança em poder finalmente enxergar a vida mais uma vez.
        Era somente uma questão de tempo até que a imagem fosse encontrada ao virar a página seguinte, e, ao procurar a resposta de um enigma, você será, com certeza, a sexta estátua a fazer parte da imagem. Mesmo que nossos olhos tentem avisá-lo do perigo.
        Por favor, não continue.

GOSTOU? ENTÃO CURTA O BLOG E COMPARTILHE, OBRIGADO

Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

Obrigado por curtir o post