Ensaios

Infocommoditie: a commoditie moderna que se reproduz

A ideia de desenvolver este tema, que coloquei na forma de ensaio, era para apresentar como dissertação de mestrado. No entanto, não me interessei em fazê-lo, porque acho que não consigo ser um estudante, e o processo de mestrado não acrescentaria àquilo que queria desenvolver: escrever, livre de amarras, orientações, seguir o meu caminho, descobri-lo sozinho. Assim sendo, este trabalho foi aceito e publicado pelo Observatório da Imprensa, in totum. Trata-se de um estudo sobre a informação como mercadoria, portanto, envolvendo a compra, a venda, e o interesse do cliente, para quem ela é dirigida. Na época, estava em voga o movimento “Cansei”, e aproveitei isso para fazer uma comparação entre Paulo Henrique Amorim e Reynaldo Azevedo, que tentavam, cada um deles, vender sua infocommodity.

INFOCOMMODITY: A COMMODITY MODERNA QUE SE REPRODUZ

A infocommodity é um produto com conteúdos diferentes para uma marca final igual. Ou seja, as várias maneiras de se vender a mesma coisa.

 ∙ O mercado tradicional se ambienta no boato e realiza no fato. O infomercado se ambienta no fato e realiza no boato.

Commodities são produtos básicos, necessários para a nossa vida. O mercado que as operam, hoje, extrapola a imaginação e no seu comércio inclui-se até o ar que respiramos: o mercado de carbono. Basicamente um mercado que está calçado no tema: os outros poupam e nós podemos respirar.

Se procuramos o ar para sobreviver, também procuramos a informação para entender o mundo em que vivemos. Por esse motivo ela é também uma commodity, também básica para a nossa existência: a infocommodity. Tem o seu embasamento temático: informe-se do nosso jeito e garanta nossa sobrevivência.

A verdade liberta. Resta saber se a verdade que vai libertar é aquela que nos interessa para continuar no mundo em que estamos.

Produtos se alternam em novidades. Produzimos, hoje, velozmente, tudo que necessitamos. No entanto, esta velocidade pode ser prejudicial para uns e libertadora para outros. A velocidade na infocommodity se torna importante, principalmente a sua disseminação, a sua reprodução. Em muitos casos, um estoque dela é a garantia de negócios ou trocas futuras, e a sua reprodução, longe do lay-out original, se torna pirataria, contrabando, negócio escuso – como qualquer mercadoria que tem um proprietário, mas a sua qualidade está de acordo com os interesses dele e não do consumidor.

A infocommodity como defesa

Diferentemente dos outros animais, o homem não utiliza os instintos naturais para sobreviver e se sobrepor ao oponente. Ao contrário dos animais, o homem não combate seu semelhante usando as armas naturais que lhe são dadas – o favorecimento genético da força, que faz com que sobreviva aquele que é mais forte e pode liderar e garantir a sobrevivência da espécie.

O homem, mais do que qualquer outro animal, não utiliza as táticas permissíveis. Ele utiliza mais do que nunca a burla, o engodo, a mentira, as fraquezas do outro, basicamente informações, para o exercício do seu poder e do seu território.

A melhor tática para a manutenção desse poder e desse território é a tática do medo, a tática da desesperança e a tática do desconforto. Para isso, é necessário o convencimento, a falta de alternativas, o estado geral de que as coisas não estão no rumo certo por algum motivo.

É nesse ponto, precisamente nele, que a tática do medo funciona, porque começam a se apresentar as “soluções”, e, principalmente, os “culpados”. Afinal, quando as coisas não funcionam, perguntam-se todos quem foi o idealizador daquilo tudo, quem foi o responsável para que tenhamos chegado até aquele ponto. O instinto natural é acordado e o líder é questionado como o garantidor da espécie.

Nunca a sociedade se pergunta os motivos que levaram à sucessão de acontecimentos e qual o seu grau de responsabilidade. A culpabilidade de alguém é o motivo, a razão, a panacéia das soluções. E cada vez mais as infocommodities se alternam na qualidade e na forma de apresentação, como a garantidora da ordem. E quem é capaz de organizá-las, ou se arvora como? O seu dono.

O necessitado é chamado às compras

A prateleira de opções que se oferece no infomercado vai ao gosto variado do freguês, e as infopromoções se dividem na apresentação do folheto explicativo. As manchetes, em chamarizes sofisticados, clamam pela atenção do consumidor, confundindo o foco de atenção, numa razão inversa da política de venda tradicional dos produtos.

A colocação da infomercadoria obedece aos requisitos da época do plantio, e, é claro, com a produção da colheita, como qualquer commodity.

Na razão inversa do mercado futuro de opções, as infocommodities têm o foco na vantagem da compra mais cara e da venda mais barata.

O lucro da operação está na expectativa que se desencadeia. O mercado tradicional se ambienta no boato e realiza no fato. O infomercado se ambienta no fato e realiza no boato.

Na manipulação da commodity tradicional, a venda ao consumidor se baseia na intenção de criar necessidades, e, dentro dela, as reproduções atendem aos mais diferentes requisitos desta mesma necessidade. Ela atende ao cidadão de primeira, segunda e terceira classe, com produtos tipo 1, 2 ou 3. E o gestor de todo processo mercadológico é a propaganda e a reprodução das imagens, ininterruptas, de forma a criar no inconsciente do consumidor o atendimento a uma necessidade que não percebera.

O mesmo mecanismo opera no mercado da commodity moderna. A infocommodity é um produto com conteúdos diferentes para uma marca final igual. Ou seja, as várias maneiras de se vender a mesma coisa. Despertar a necessidade e vender a solução.

No mercado da infocommodity a reprodução se faz com a linguagem da repetição. Essa reprodução incessante, cada vez mais num ambiente competitivo de opiniões, um bombardeio tenaz sobre o fato, de forma que o cruzamento de informações, muitas vezes inadequadas, despropositadas, metafóricas, traduzíveis para as diversas faixas de consumo, fora de contexto, permita que a reprodução se faça pelas esquinas, ocasionando um festival de interpretações que desfavoreça o aparecimento do verdadeiro objeto do desejo: a verdade.

De forma tal que esta mesma verdade se torna mais uma reprodução dela mesma, diluída, que perde a sua aura ritualística, gerando o personagem especulador desse mundo: o oportunista.

A DEMONIZAÇÃO DA NARRATIVA

Sartre, em suas considerações sobre o racismo, aborda o maniqueísmo como uma mascaração profunda pelo Mal. A pergunta que fazemos é: se aquele é o mal, onde estará o bem? Alguém estará preocupado em encontrá-lo?

Muitas vezes, a mídia, representada pelo debate entre jornalistas de opiniões divergentes, na tentativa de personificar o mal no oponente, pratica uma sucessão de manipulações que não faz os discursos, absolutamente, serem a representação do bem. A demonização do adversário, através de palavras chulas e representações depreciativas, corrobora o pensamento de Sartre “o maniqueísmo mascara uma atração profunda pelo Mal”.

O emprego intermitente, na crítica ao discurso do adversário político, de um palavreado chocante, extensivo até mesmo a altas autoridades da república, faz-nos parecer que o direito à falta de educação, permitida aos comentários, é estendida aos jornalistas, e os transforma em torcedores e chefes de torcida, sendo que a análise do fato, para esclarecer pessoas, a notícia em si, torna-se irrelevante.

A utilização de expedientes, como na divulgação de eventos, com o uso da imagem, tentando atrair um determinado contingente, que, identificados em pesquisa, teima em não se conduzir para o suposto lado do bem, ou por convicção ou por desconhecimento, também é uma forma maniqueísta de atrair o mal.

Cada lado constrói o outro lado da forma mais demoníaca possível. O que transforma os dois lados em defensores do mal, ou seja, repetindo Sartre: “o maniqueísmo mascara uma atração profunda pelo Mal”.

Não é comum a defesa através de atuações propositivas, ou seja, apresentar sempre uma alternativa benigna contra o lado dito como maligno.

No caso dos opositores, personagens midiáticos, que têm acesso a qualquer forma de apresentação de suas ideias, dentro de uma embalagem pré-concebida pelas mídias, a troca de argumentos se dá não pela defesa ou ataque, por exemplo, de programas bem-sucedidos ou malsucedidos, mas de uma forma agressiva, como se as contestações fossem bombas a serem lançadas ao outro lado.

É uma guerra na sua forma literal.

Os “atores” da informação

Os atores envolvidos no processo jornalístico não só apresentam o fato. Nas abordagens dos assuntos preferem a entonação monocórdia, muitas vezes, a ironia facial, como se estivessem vestindo, naquele momento, o manto da castidade incontestável.

A função jornalística permite a performance teatral? A mídia pode teatralizar? Apontar o errado, o irresponsável, por si só deveria ser o suficiente. A necessidade de se conduzir o telespectador, o leitor, o ouvinte, prova uma não-convicção, e uma não-certeza de que para a sociedade aquilo que se comenta possa ser considerado um crime.

O risco da mídia, o grande risco, está no fato de ser desacreditada se a interferência do locutor, a ironia do articulista, ser levada em consideração na análise da notícia. Se o ator não for bom, ou se for pego em alguma impropriedade, a seriedade do fato se desvanece diante da má-performance.

Pequenos detalhes, como a leve expressão de subir as sobrancelhas, um olhar ou o riso irônico, a utilização de algum bordão, a perpetuação de um mesmo palavreado classificatório para definir mensagens diferentes, correm o risco de plastificar a crítica, e ser um amontoado de palavras.

A notícia corre o risco de cair em descrédito e estar ao sabor da interpretação. E, em existindo uma relação de empatia entre emitente e receptor, o valor da notícia se perde. A simpatia pode levar a uma inusitada situação de o personagem ser maior do que a peça apresentada. Por outro lado, a antipatia pode levar uma notícia ao descrédito.

O Bem e o Mal na narrativa

No artigo de 23/08/07, com título LULA E OS VAGABUNDOS, Reinaldo Azevedo, na Veja on-line, reproduz,

Sobre um discurso feito pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva para trabalhadoras rurais

“Mais importante ainda é o seguinte: se alguém disser para vocês, em qualquer lugar do mundo, que nós vamos mexer no direito dos aposentados brasileiros ou da mulher trabalhadora rural, vocês podem saber, sem olhar na cara, que quem está falando é mentiroso. Porque eu tenho consciência de que, muitas vezes, uma mulher trabalhadora rural ou um trabalhador rural que precisa, para cumprir a lei, prestar informação com documentos, tenho clareza de que o trabalhador urbano tem que contar o tempo de serviço, mas eu penso sempre o seguinte: se a gente quiser ver a cara de quem trabalha no campo, de sol a sol, a gente não precisa de documento. Do vagabundo, a gente precisa do documento, impressão digital e outras coisas mais. Mas, do povo trabalhador, que trabalha de sol a sol, a gente olha a cor da pele, a gente olha a grossura da mão e a gente sabe que aquela pessoa é trabalhadora e, por isso, os trabalhadores não irão perder os seus direitos”.

Na análise do jornalista Reynaldo Azevedo no Veja On-line, artigo datado de 23/08/2007, acerca de o Presidente ter chamado os trabalhadores urbanos de vagabundos:

Voltei
É, chamou, sim. Se, sendo benevolente com ele, não dá para dizer que chamou todos os aposentados urbanos de vagabundos (ainda acho que a intenção foi essa), afirmou, com certeza absoluta, que todos os vagabundos pertencem ao grupo dos trabalhadores urbanos”.

A respeito de Paulo Zottolo e o movimento “Cansei”, o mesmo articulista.

No artigo de 22/08/07, com o título O PIAUÍ É AQUI.

“Nesta terça-feira, empresários do Piauí decidiram realizar um boicote aos produtos da marca Phillips em protesto à declaração de Zottolo. O Grupo Claudino, que tem mais de 300 lojas de departamentos em dez Estados e era o quinto maior comprador da Philips no Brasil, mandou suspender negócios com a empresa e retirar todos os produtos das lojas. Um dos diretores do Grupo, João Claudino Júnior, disse que recebeu ligações do executivo da Philips pedindo para reconsiderar, mas não desistiu da ideia”.

“Voltei
O pseudo-regionalismo nordestino (já falo dele) se juntou ao esquerdismo de salão da grande imprensa de São Paulo e do Rio para criar uma “causa”. Nunca tantos defenderam o Piauí por tão pouco — ou melhor, por nada. Estão usando uma frase sem dúvida infeliz, já afirmei isso, para tentar transformá-la numa espécie de síntese dos que se opõem ao governo Lula”.

O raciocínio de infelicidade em uma afirmativa toma uma forma tênue quando o personagem analisado é alguém que defende uma determinada forma de pensar. Ao mesmo tempo, a infelicidade da palavra não é admitida ao Presidente, que falara de improviso.

Com oportunidade, aproveitamos a fala do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no BNDES, em 11 de maio de 1998, e que foi aproveitada como manchete pelos jornais com a afirmativa corrente até hoje de que chamara os aposentados de vagabundos.

“O valor médio dos benefícios da Previdência Social cresceu e tem que ser mantido. Para isto é preciso fazer a reforma, para que aqueles que se locupletam da Previdência não se locupletem mais, não se aposentem com menos de 50 anos, não sejam vagabundos num país de pobres e miseráveis”.

Sobre a mesma afirmativa do Sr. Paulo Zottolo sobre o Piauí, feita por Paulo Henrique Amorim.

“O PIAUÍ É O NORDESTE”

“O presidente da Philips do Brasil, Paulo Zottolo, um dos líderes do movimento “Cansei”, disse ao jornal Valor: “Se o Piauí deixar de existir ninguém vai ficar chateado”.

. Diante dessa manifestação explícita de racismo, o Conversa Afiada acaba de encaminhar o seguinte e-mail à Presidência da Philips mundial: “Does Philips consider itself a blatant racist corporation?”. O meu amigo Fernando Lyra, pernambucano, Ministro da Justiça escolhido por Tancredo Neves, leu nesta manhã de sábado, dia 18, o noticiário sobre o “Cansei”.

. Me ligou para dizer o seguinte: “para o presidente da Philips, o Piauí é o Nordeste.”

. Num almoço muito divertido, meu amigo Fernando Lyra lembra que há pouco tempo o presidente da Philips era Marcos Magalhães, um nordestino de Pernambuco, da mais alta competência empresarial e sensibilidade social”.

Evidentemente que a narrativa demonizada é explícita em defender uma determinada posição política. Ela, infelizmente, esconde a análise do assunto, visando municiar o leitor de informações que possam contribuir para formar uma opinião.

Reinaldo Azevedo comenta uma estatística sobre o Bolsa-família:

O que significam os números do IBGE sobre o Bolsa-Família?

Os dados comprovam, primeiro, que o foco do Bolsa-Família é bom, melhor que os programas de transferência de renda tradicionais, mesmo os que foram criados depois da Constituição de 1988. Mas, além disso, indicam também que se trata de um programa que não tem capacidade de transformar a vida dos pobres. Esse é o desafio maior que os organizadores do programa enfrentam. Como afirmei em um recente estudo a respeito, o problema é que, uma vez interrompido o programa, a sua clientela volta ao status marginalizado original.

Programas compensatórios não constroem por si portas de saída da pobreza: é preciso projetá-las, para que os pobres as abram”.

Faltaram as soluções para as portas de saída, que, realmente, são os pontos preocupantes do sistema. Em alguns momentos, no entanto, o bom jornalismo aparece mesmo em pessoas que atacam ou defendem uma determinada situação política. Falta-lhes, entretanto, a colaboração de ideias, isso sim uma decisão séria para melhorar a discussão do país.

O uso da imagem

Recentemente, no movimento chamado “Cansei”, em São Paulo, utilizaram-se os organizadores de duas imagens. A primeira de um negro, devidamente escolhido pela sua idade, um conservador, a expressão de insatisfação através de uma imagem séria.

A escolha do ser humano como avalista de um movimento social corre o risco de definir o movimento pelo outro lado.

Senão vejamos. Sartre, em suas “Considerações sobre o racismo”, escreve: “A utilização do negro assume uma dubiedade, ao mesmo tempo em que passa uma não discriminação é discriminatório”.

Ao se apossar da figura de um negro, portanto, utilizando a suposta figura adversária, o movimento “Cansei” caiu em uma armadilha maniqueísta, que não permite uma defesa consistente.

Sendo considerado um movimento elitista, e, portanto, coisas de pessoas brancas – no que rapidamente os opositores se apressaram em não identificar pessoas negras no movimento -, o “Cansei” quis demonstrar que seus integrantes não tinham a discriminação.

E a armadilha funcionou, porque utilizaram uma imagem de quem os opositores não acham que possam representar o movimento, o símbolo da exclusão, do não beneficiário dos progressos sociais. Ao mesmo tempo, apostaram que a imagem atrairia simpatias, o que prova que estavam em um lado definido, e incorporaram o feito, contabilizando um débito.

Ou seja, para provar que não eram discriminatórios, apresentaram um suposto discriminado. Do mesmo jeito, a armadilha funcionaria se apresentassem o lado oposto: um branco. A armadilha funcionaria também se apresentassem um casal. Quem seria o negro? A mulher? Quem seria? Um homem? E se fossem dois homens, ou duas mulheres, quem seria quem?

Maniqueísmo na mídia, ou na divulgação, exacerba sentimentos, transforma o normal em algo potencialmente explosivo.

Outro panfleto do movimento mostra quatro personagens televisivos. A credibilidade de qualquer movimento não pode passar pelo atestado de personagens. É fácil separar o personagem do autor? A simbiose entre os dois ajuda ou prejudica?

O patrulhamento é algo inevitável. O Mal personificado pelos dois lados tenderá sempre a demonizar um e outro, o que coloca em risco o personagem e, por conseguinte o autor. A seriedade supostamente colocada abusa do cromatismo, sendo que o cromatismo em preto pressupõe a indignação. O rosto de seriedade propõe uma demonização ao discurso oponente.

O outro lado tende a ridicularizar as posturas, tendo em vista que sendo pessoas que usam sua própria imagem para ganhar dinheiro, estariam emprestando as mesmas com um interesse obscuro, já que não são pessoas anônimas.

Portanto, mal e bem são pontos de vista de um mesmo objeto ideologicamente montado pela mídia. Logo, segundo Guimarães Rosa, Deus colocou o mal no mundo para que os homens conhecessem o bem. No final da história, a mídia não está conseguindo enxergá-lo, apesar de praticar o mal com bastante acuidade.

VONTADE POPULAR: DE MITOS A MICOS.

Segundo Benjamin Constant, “a “vontade geral” é a única fonte legítima da autoridade dos governos. Falta, porém, acrescenta ele, “definir exatamente” o que se deve entender por soberania – e, especialmente, por soberania do povo. Falta, ainda, determinar até onde deve exercer-se o poder”. (O que é o poder. Gerard Lebrun. Coleção primeiros passos, pág. 74. Editora Brasiliense, 1984, São Paulo).

O leitor é um personagem bem estranho. É aquele para quem se fala, escreve, mas que continua sendo um ser absurdo, não presencial. Pode ser aquele que não nos emociona. E que somente se torna tangível quando se apresenta protagonista de um drama, e se torna através do fato, a sombra com rosto e emoções.

Em tempos idos, em que o saber estava entre poucos, a definição de povo entrava no componente da discussão como a figura acessória, passiva, receptora da mensagem, que sofismada ou não pelo douto funcionava apenas como o espelho sem brilho. A mensagem era dada, questionada por pares e exibida à plateia, mera coadjuvante e expectadora.

A tal ponto, que essa massa expectadora era visualizada dentro de uma fantasia, presente apenas na imaginação do autor, que dono de um poder imaginário, a personificava a seu modo.

Poucas vezes na história, o povo, ou a “vontade geral”, ganhou as ruas e mostrou um lado assustador do que passou a ser chamado de poder das massas. Em linhas gerais: a revolução francesa e o movimento bolchevique.

E o susto causado, por essa movimentação, aos donos do capital foi atenuado pela classificação de movimentos supostamente espontâneos, mas impulsionados pela tal “vontade geral”, como isso mesmo, massa. A própria empulhação, no seu sentido mais baixo, de zombaria, para o nome que define o povo, que demonstrava o desprezo do autor, dono do poder sofístico.

Do mito à realidade

O boca a boca, o boato, foi enfim organizado pela informação impressa. Até porque a palavra impressa tem o poder de se portar como documento, como o inquestionável. O boato é uma fonte rica de divulgação do falso, do arbitrário e do interesse. Este boato organizado e tiranicamente ordenado tornou-se o poder que conduzia, supostamente, a soberania popular, e com o passar do tempo ao descrédito.

Com o advento do progresso humano, basicamente na tecnologia e no isolamento de muitos povos, criando as ilhas de felicidade, a informação passou a exercer um papel diferente.

Utilizando o espelho de Narciso, a evolução econômica dessas ilhas de felicidade, o egoísmo, tomou conta de determinados guetos populacionais no mundo, e a informação assumiu um outro papel: o de mantenedor de uma ordem supostamente hegemônica. A ignorância da realidade daqueles que deveriam pela sua evolução tecnológica ser os mais questionadores tornou-se o libelo da manutenção do suposto apogeu.

Antevisto há muitos anos, o Grande Irmão tornou-se o proprietário do poder, aceito inconscientemente pela sociedade luxuosa: basicamente a Americana do Norte, Europeia e mais distante o Mundo Nipônico. É importante falarmos não de países, mas de gerações espalhadas pelo mundo, que adotam o estilo de vida, não só no consumo como na visão política de sociedade.

Esses guetos organizaram a informação, fato que foi brilhantemente definido em um filme – República dos Assassinos, a partir de uma obra de Aguinaldo Silva, um dos clássicos do cinema policial brasileiro. O repórter, que seria o narrador do texto, justifica que a banalização da criminalidade, do tratamento jocoso e trivial, seria uma forma de sinalizar ao excluído da sociedade que a aceitação do crime e de seus desdobramentos odiosos era um fato a ser aceito como “normal”, próprio daquele mundo onde ele vivia.

Aceito o fato, a própria ausência do poder público, e o aparecimento do justiceiro, no melhor estilo bang-bang, tinha a sua razão de ser, porque o mundo era aquele mesmo, o que cairia como uma luva na tão malfadada suportabilidade do brasileiro para a desgraça. E estaria a dita classe mais rica protegida num imenso condomínio virtual: o centro e a zona sul das cidades.

Assim foi até hoje, com a própria sociedade americana do norte. As guerras que aquele país impôs e impõe ao mundo, em nome da guarda dos seus valores e do seu condomínio territorial, seriam o mantenedor da ilha de felicidade invejada, que poderia se manter perpetuamente, enquanto o poder do armamento e a suposta hegemonia militar garantissem.

Mas, dentro da ilha de felicidade americana, o cinema apontava e criticava este mito, embalado pela informação, o real era falso, personificado em um filme chamado Os Seis Dias do Condor.

O mito guardião da informação, da única informação, inclusive argumentativa era inabalável. Mas começou a desmoronar com o fracasso da guerra do Vietnã, o envolvimento em outros movimentos bélicos de efeitos duvidosos, e mais recentemente com o ataque terrorista do onze de setembro.

A guerra do Iraque espera-se deva ser a pá de cal, mas os seus desdobramentos se tornarão imprevisíveis. A capacidade de criar mitos de felicidade e segurança parece estar chegando ao fim.

Do mico à “falta de educação”

Foi a moeda a primeira ferramenta eficaz da “vontade geral”, porque a moeda, pela singularidade de ser uma mercadoria única, produto básico de troca universal, é o patrimônio de bolso, literalmente. Depois dela, a internet é o segundo patrimônio que a “vontade geral” dispõe. O poder econômico, e dono do quinhão maior da moeda, em mãos de poucos, adulterou este equilíbrio e tornou a informação um forte instrumento de manipulação moderna da tal “vontade geral”, agora não mais supostamente dominada por doutos, de intelecto privilegiado, mas subordinados ao dono das vontades, dos interesses, do dinheiro.

Mas quem é o dono da mídia eletrônica fugidia e mal educada, que pode agora, longe da fuligem das ruas, ganhar uma amplitude muito maior, não mais subordinada às margens da imprensa escrita?

A tal “vontade geral” ganha o mundo. Os donos da informação que teimam em manter os textos e as informações organizadas, ditando regulamentos aos discursos, hierarquizando informações, sentem agora o cheiro das caminhadas eletrônicas inundarem, sufocarem, abafarem os discursos que deveriam obedecer a um regulamento prévio.

A própria revolução venezuelana ganha as duas versões e podem ser finalmente comparadas. Os fatos são postos na mesa iluminada da tela do computador, e a própria “vontade geral” ganha os ares de botequim, com o anonimato, com as sombras sem rostos, mas plenas de emoções aflorando, questionando, e não raro com argumentações lúcidas, respeitosas, elegantes, e também mal educadas e patrulheiras, ombreando sábios até pouco tempo intocáveis.

Não raramente, vozes também laureadas por títulos, e que apenas não estão em evidência pelo simples fato de não estarem no lugar certo e na hora certa, e, principalmente, ao lado de quem, põem em xeque os donos de suposto saber.

As regras foram para o espaço… cibernético. E nenhum pretenso dominador consegue se impor no caos, realmente sem controle, da internet.

O sociólogo e ex-presidente transmite o descrédito com o país, quando justamente este país está se questionando o tempo todo, via rede. O seu ar blasé diante da indiferença do brasileiro, com a idiossincrasia dos mitos, mostra, presumivelmente, uma má-vontade “representamen” daqueles que pensavam, imaginavam controlar o imponderável. E as declarações de indiferença soam como gafes.

Com uma “vontade geral” sem controle, que pode mudar sim o rumo de eleições, ignorar, desprezar o bloco de blogueiros independentes como fez o Estadão realmente é o mico da história da informação, mesmo à guisa de propaganda. Ou o artigo do editor-chefe de O Globo sobre o testar hipóteses. Situações que seriam outras, se diante do leitor sem rosto. Qual será o rei que está nu?

Não mais os doutores, pseudos donos do saber podem se arvorar de ser a verdade perene, levemente questionada por alguns pares. O respeito acabou. Mas o respeito cerimonioso. A tela do computador igualou os olhares.

Não se pergunta mais aos livros, mas ao Google. E não é só uma resposta pronta, enciclopédica. É uma resposta diversificada. A plateia se iluminou e é coadjuvante, agora em tribos, torcida organizada, fornece argumentações, que se tornam irrespondíveis, diante de fatos, testemunhos globais, porém não televisivos.

A palavra está a um enter e assume as formas desejadas. O discurso não tem mais dono. Ficou sem controle.

A plateia também resolveu assumir o lado pecaminoso e maravilhoso da vaidade, de mostrar que também sabe e pode questionar, mesmo com falta de educação, sem regras. A massa ganhou contornos de confeitos e apetitosamente se torna consumida por seus pares, suas tribos. A “vontade geral” finalmente mostrou a cara. Manter o mito virou mico.

O MOVIMENTO DOS SEM-VERBO

  A comunhão destes três assuntos tem uma razão de ser. No mundo “business”, a técnica na venda de produtos cada vez mais é o fato marcante. No mundo da sobrevivência capitalista, o lucro, como forma de sobrevivência se torna, como é sabido, o objeto de desejo que está por trás de qualquer programa de excelência.

A informação preparada

  Os programas empresariais embalados pelos japoneses, como o sistema S, nada mais foi do que procurar encarecer os produtos produzidos em alguns países asiáticos (conhecidos como “tigres”), que passaram a copiar as mercadorias japonesas de sucesso e consagradas. Para compensar os baixos custos da mão-de-obra, foram criados mecanismos de busca de qualidade, e de condicionamentos de parcerias, que pudessem compensar esses custos, obrigando uma melhora na qualidade e assim procurar um nivelamento de preços.

   A preocupação ambiental, por exemplo, não era um lugar-comum nas empresas. A guinada ecológica deu-se pelo esclarecimento da população, que viu na preservação do planeta um motivo de busca de qualidade, e essa conscientização do público que adquire produtos, e por ser de uma fatia de renda maior, tornou-se o libelo diferencial das empresas, interessadas em seus balanços.

    O mercado, portanto, detecta movimentos, se antecipa aos desejos do consumidor, mas tudo visando nada mais nada menos do que preservar lucros e fatias de mercados.

   Numa linguagem moderna de competição, qualquer vendedor, de qualquer produto, de qualquer empresa, precisa respirar metas. Ao ouvir uma conversa, uma notícia, uma leitura, um comentário político ou econômico, deverá sempre o profissional atento se perguntar: minha empresa pode ganhar dinheiro com isso?; eu poderia ganhar dinheiro com isso?

   Neste ambiente de negócios em que vivemos, somos vendedores em potencial. Já nascemos vendedores, ou pelo menos como manipuladores estratégicos, visando atingir o objeto de desejo. Para vender algo, necessitamos saber primeiro o que o nosso cliente quer. Estratégicos no poder de barganha quando choramos no berço e pedimos colo. Quando mentimos para enganar a professora e conseguir uma nota melhor. Quando partimos para nossa primeira conquista amorosa, e procuramos saber tudo sobre o nosso objeto de desejo: qual o nome; onde mora; e, principalmente, o que gosta.

   Neste ponto, saber do que nosso objeto de desejo gosta, nos adaptamos, aprendemos a discutir com propriedade aquele assunto, nos tornamos defensores dele, mesmo a contragosto, porque precisamos daquilo, aquilo é o que queremos.

   Portanto, o nicho de mercado é a meta que queremos alcançar. Com a informação se dá o mesmo. Como vimos, a informação seria uma commodity, um produto básico. E, na maioria das vezes, é vendida de acordo com a vestimenta que o cliente quer. De uma forma discreta, com uma diagramação elegante, visando atingir um público selecionado, de poder aquisitivo e com grande capacidade de informação (aí, incluímos a dita “grande imprensa”). De uma forma popular, com uma diagramação chamativa, colorida, com manchetes exageradas (aí, incluímos os jornais mais populares). Para um público mais especializado, mais depurado (aí, incluímos os nanicos ou mesmo os jornais específicos de negócios, por exemplo). Ou seja, assuntos são mais preparados do que outros. Uma evolução importante do câmbio ou a invasão policial e a prisão de um traficante tem níveis de interesse diferentes, em cada um dos jornais.

   Portanto, a mesma informação é preparada para cada tipo de clientela, e embalada de forma diferente.

O comércio da informação

   Na formalização da conquista, os desejos extrapolam determinados limites na abordagem. Isto fica exacerbado quando o vendedor procura formar a “vontade” do consumidor, partindo do pressuposto que o produto dele é bom, e o comprador não o aceita por ignorância ou má-vontade.

      A postura de dentro para fora da mídia, detentora do produto informação, ajudou a construir com o tempo, que o consumidor do produto, o leitor, o ouvinte ou o telespectador é um ser que estaria sempre pronto a aceitar os argumentos propostos, levando a mídia assim a acreditar que era dona dessa “vontade”.

   Muitas vezes, ela apenas enumerava, suprimia fatos, a fim de construir uma “verdade”, ignorando as discussões, certamente acaloradas que se desenvolviam nas ruas.

   Na década de 70, em pleno regime militar, dois jornais, no Rio de janeiro, disputavam a opinião das ruas: O Jornal do Brasil pelos opositores e O Globo pelos conservadores. Pelo menos assim os dois jornalões eram apresentados à plateia.

   Nas patrulhas ideológicas, O JB era visto como a leitura in, e O Globo como a leitura renegada. As plateias se dirigiam aos seus periódicos no intuito de se retroalimentar de argumentos para as discussões. O público lia assim o próprio espelho político.

   O mais esclarecido possivelmente lia o opositor, porque ao invés de se ler no espelho procurava saber o que o outro lado pensava. Portanto, um instrumento de defesa construído com independência.

   Esse processo presentificou cada vez mais o público cativo, aquele que consumia toda a literatura específica para cada tipo de pensamento. Ou seja, era o que chamaríamos hoje de tribos. Alimentar este público com palavras, discursos prontos e principalmente a propagação de literaturas afins favorecia um comércio próspero.

O mercado definido

   O emprego de uma narrativa que visava mostrar o lado maligno da oposição foi o processo empregado, se bem que, voltando a falar da década de 70, tudo o que fosse possível apurar de mal do outro lado, era o embasamento firme para persuadir o público que vivia no “limbo” da informação.

   Naquela época tudo se justificava, tendo em vista que o objetivo da oposição era enfraquecer a ditadura, e pelo outro lado o fortalecimento dela. Eram objetos de desejo divididos em uníssono. Havia comunhão de pensamentos, o que facilitava o trabalho dos articulistas de ambos os lados.

   Havia uma paz relativa, com as fatias de mercado bem definidas. Afinal tudo de mal era atribuído a uma situação ditatorial, e, por outro lado, a oposição ainda não estava no poder, e, portanto, ainda imaculada em termos administrativos no governo federal.

A competição no mercado da informação

    Chegamos, enfim, a uma tentativa de explicar o que ocorre hoje no mercado da mídia. A geleia geral política, definida por Ulisses Guimarães, finalmente se desfez. A oposição, no sentido de oposição em relação à década de 70, foi distribuída por partidos com diferentes ênfases ideológico-administrativas.

   Como a classe política, o público se definiu e se rearranjou aderindo a diversas facções. Essa divisão exigiu desse público uma procura por discursos com os quais se identificassem.

   O mercado da informação partiu assim para uma distribuição de produtos que pudessem satisfazer esse mercado de consumo. As discussões das ruas foram procurando os seus “líderes”, aqueles que se dispusessem a “vender” um discurso que se adequasse às necessidades do público sem-verbo. Ou seja, o público que sentia alguma coisa de certo ou errado, mas que por insuficiência intelectual, ou de acesso às mídias, não podia sentir na telinha, na página do jornal, os seus sentimentos e pudessem agregar outros com a mesma linha de pensamento, e, finalmente, se sentissem como pertencente a um grupo de pensamento.

   Com oportunidade, alguns profissionais de imprensa percebem esse mercado consumidor e se prontificam a colocar a serviço desses grupos a habilidade discursiva, e o pano de fundo da mídia impressa, televisionada ou a radiofônica, e mais presentemente a Internet. Foi por esse motivo que a ideia da interatividade entre público e mídia tomou fôlego dos últimos tempos. Público cativo, mercado certo.

    O profissional de imprensa mais que rápido percebe os nichos de mercado que afloram na interatividade e a necessidade de expressão desses grupos.

   Lógico que o movimento dos sem-verbo significa mercado consumidor seleto e definido nas suas ideologias. A mercadoria informação torna-se um forte produto de venda agregada. O grupo de descontentes com o Brasil como país que nunca vai dar certo, uma eterna bagunça, o grupo dos que acreditam, os otimistas, o grupo de apoio à situação e o grupo da oposição e mesmo aqueles que não se interessam por política, os famosos alienados. Todos eles passam a significar dinheiro.

   Os leitores passam a se tornar fiéis de determinados colunistas, blogs, sites. E porque não vender o que eles desejam?

   A demonização da narrativa passa a ser o fio condutor da propaganda discursiva. Quanto mais um blog é alimentado de opositores e simpatizantes que se xingam mutuamente, e não levam a lugar nenhum, o colunista da vez preocupa-se em alimentar seu público com argumentos fortes. Por outro lado, o público que procura uma informação mais distanciada das discussões acaloradas, perto dos argumentos elucidativos ou da informação “limpa”, distante das linhas ideológicas, também é um mercado consumidor potencial. Tudo é lucro. O público vai às compras, procurando a marca, o produto que lhe interessa consumir.

   Portanto, não é difícil imaginar que um profissional de mídia, identificando um determinado grupo de pensamento, como por exemplo, que gosta de menosprezar o Brasil como nação, de menosprezar os políticos, de enxergar corrupção em todo lugar, ou mesmo de enxergar o otimismo em todo lugar, incorpore um personagem que possa dar voz e razão a estes grupos.

   Vendido o personagem, o consumidor compra a ideia, porque ela se identifica com o seu modo de pensar. Tem o seu cheiro, e lhe proporciona argumentos não imaginados para interagir com outros pares ou opositores e quanto mais o personagem é odiado ou amado, mais o dono dele pode auferir lucros como um vendedor que satisfaz o objeto da conquista fazendo o seu público vibrar e ouvir a música que gosta. Multiplicando essa audiência por livros, conferências, podemos crer que se trata de um mercado promissor. O problema é comprar gato por lebre e parar de pensar.

 

Nilson Lattari

Nilson Lattari é carioca, escritor, graduado em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Gosta de escrever, principalmente, crônicas e artigos sobre comportamentos humanos, políticos ou sociais. É detentor de vários prêmios em Literatura

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